Pelo padre Teodoro Medeiros
Johan é um menonita, membro de uma denominação cristã originada no movimento da Reforma e que se espalhou pelo mundo, originária da Suíça, parte do movimento dos chamados anabatistas e com ligação ao próprio Zwingli, um dos mais famosos reformadores. Os menonitas são pouco conhecidos mas não insignificantes: existem cerca de dois milhões espalhados pelo mundo.
O filme de Carlos Reygadas em revista (“Luz Silenciosa”) não dá muita relevância às regras religiosas da comunidade ou às suas dificuldades no diálogo com as culturas onde estão inseridos: há mesmo ampla demonstração da osmose social relativa que os personagens vivem no seu dia a dia comum, sem prejuízo, obviamente, do típico conservadorismo no vestuário.
Não se trata de uma obra normal, destinada ao grande público, ou sequer aos adeptos do cinema religioso mais típico: daqui sai-se sem saber bem o que pensar (um dado muito positivo), mas com a segurança de que é cinema que trilha o bom caminho. O filme versa sobre a estranheza que o amor pode assumir, é uma espécie de documentário bucólico, um poema à beleza da natureza e à coragem necessária para a retratar, um hino à lentidão da consciência moral.
Nem tudo encaixa perfeitamente, nem sequer o prolongar de alguns planos ou a inclusão de momentos irrelevantes do comportamento das crianças: a mensagem metanarrativa é que as perguntas importantes são de outra natureza. E assim, o grande desafio é sobre o que Marianne, a amante, deva simbolizar para nós espetadores: o que aprendemos com ela? Que tipo de fé é a sua? Porque resolve tudo?
Johan ama verdadeiramente tanto a esposa como a amante, ao ponto de nada esconder quer a uma quer a outra. O triângulo não se constitui como uma manobra de diversão mas sim condição existencial e somos obrigados a rejeitar o predomínio da leitura moral para aceitar o enfoque que é apresentado: é claro que o protagonista não vive aquilo que o próprio pai dele já vivera, um romance extramatrimonial motivado causado pela própria superficialidade e cansaço da vida.
O que quer tudo isto dizer? Que interpretação faz justiça ao coletivo dos sinais narrativos? Quando tudo parece já resolvido, o boião diegético introduz um elemento mágico que seria de mau gosto revelar, mas que confirma uma linha de coerência autoral: deixem de explicar tudo, de enquadrar tudo em esquemas predeterminados porque não é disso que estamos a tratar aqui.
Descaradamente, tranquilamente, se bem que com uma pitada de erotismo, o cozinhado repesca o famoso “Ordet”, “A Palavra” de Dryer, no seu momento mais incisivo e inesquecível. É mais lenha para a fogueira mas também uma declaração de coerência: “Luz silenciosa” serve um propósito mais alto, a sua austeridade é honesta, o seu convite não é gratuito. Mas não se trata de imitação simples, antes citação que quer desenvolver, ir além do original.
A austeridade também se encontra na banda sonora, existente apenas no sentido de que o filme tem som, já que não se oferecem os atalhos sentimentais de música pré gravada. Em vez disso, grilos, vacas, o chilrear de pássaros e, largamente, o silêncio humano pontuam. As cenas de abertura e fecho, lentas, quase panteístas, excedendo Malick, miraculosas, são também dessa fora enriquecidas e justificam só por si o filme à grande.
Os filmes perfeitos são raros e essa perfeição é muitas vezes imposta pelos nossos olhos e pelas recompensas sentimentais que nos proporcionam. “Luz Silenciosa” é esquivo, assertivo mas descomprometido, sacro e profano, monocórdico mas de olhar amplo, esteticamente pobre e sublime ao mesmo tempo.
Um exercício estimulante de cinema.