O tempo das incertezas absolutas

 

Pelo Padre José Júlio Rocha

Isto de fazer anos assemelha-se a um metrónomo em contagem decrescente para uma espécie misteriosa de fim desta vida, um compasso inexorável contra o qual nada podemos. Ainda bem que é assim porque, se assim não fosse, seria bem pior. É bom aceitarmos todas as etapas da vida. Não desejo que o tempo volte para trás, não pretendo regressos ao passado, não tenho saudades inabaláveis da infância ou juventude, sinto-me bem na pele que me cobre, na idade que me cabe, no tempo atual. Quando – e se – chegar a ancião, quero sentir-me bem na minha velha idade, ler os livros que acumulei, coisa que, desde os seis anos, sempre gostei de fazer.

O primeiro aniversário de que me recordo foi a 16 de julho de 1974, fazia seis anos, há exatamente 46 anos a esta parte. Meu avô ao portão, de cajado às costas e um cesto de figos dependurado nele, via-me saltar um muro de pouco mais de meio metro sem tocar com os pés, que separava a minha casa da dos meus padrinhos, de onde trazia a oferta, uma t-shirt branca com as mangas vermelhas. “Já tenho seis anos, avô!”

Era o tempo em que os soldados regressavam do Ultramar, e eu andei às cavalitas de um deles, caro amigo e vizinho, a cantar “Avante, camarada, avante, o sol brilhará p’ra todos nós”. Ele pôs-me a espingarda nos braços e eu quase não a segurava, de tão pesada, assustado com aquela coisa que podia matar homens.

Aos seis anos sabe-se mais da vida do que aos cinquenta e dois. Sabe-se tudo. Sabe-se que já não há gigantes nas terras longínquas e que a catequista tem mais medo de ladrões do que de fantasmas, coisa mais absurda; que a sineira da igreja tem um calaboiço para rapazes malcriados; que a América fica nas nuvens, onde passam os aviões; que, naquele rádio Nordmende gigante, existe um estádio de futebol de onde saem os relatos.

Tem-se, sobretudo, a certeza absoluta da simplicidade do amor. O amor é um gato que ronrona abraçado ao nosso pescoço; é um beijo do pai quando fingimos dormir; o sorriso e a festa da mãe, com a roupa na “pana”, do lado de fora da janela solarenga; os dedos do pé da avó que não param de mexer no estrado dos bordados, enquanto me agarro para os segurar. É discutir, noite adentro, com o irmão, se é mais perigoso estar num cerrado com um rinoceronte (a que chamávamos pacaça) ou na piscina do Porto Martins com um tubarão lá dentro. É andar na Lambreta, entre os braços do pai, a caminho da Praia, o maior lugar do mundo. É receber um chocolate do americano simpático que veio cortar o cabelo. É ser atirado ao ar pelo primo mais velho que me chama “calhapão”; contar, uma por uma, todas as

árvores do mato do Ferraz e abraçá-las como se fossem o testemunho da vida; oferecer uma esferográfica “Bic”, muito rafeira, à professora no dia dos seus anos.

Aos seis anos o que não se sabe não existe. Não nasci. Vim de frança, numa cestinha que caiu junto da cafua da vinha do avô. Hoje sei menos dos mistérios do nascimento de uma vida do que naquele tempo de certezas inabaláveis.

Tinha seis anos quando o primeiro televisor chegou lá a casa e, com ele, o resto do mundo em dois canais: a televisão americana e os primeiros passos da RTP Açores. A antena esgalhada montou-se, sobranceira, pela chaminé acima. As “moscas” inundavam o ecrã, mas dava para ver os macaquinhos às nove da manhã de sábado, apreciar a “Pipi das Meias Altas”, “A Pedra Branca”, a Heidi, o Marco. Veio também, dentro daquela estranha caixa, o resto do mundo, desde o “Verão Quente” à “Guerra Fria”, das sedes do Partido Comunista queimadas às bandeiras da FLA. E eu comecei a ter medo do mundo, que, bem feitas as contas, era maior do que a distância entre a Fonte do Bastardo e a Praia. Foi por essa altura que eu comecei a perceber que não percebia quase nada.

Hoje, na hora dos 52 anos, regresso a dentro de mim, a essa criança que fui deixando para trás e gosto de falar com ela. Não para lhe ensinar alguma coisa mas para reaprender muito. Sou um homem de fé. E se alguma coisa essa fé me ensinou – ou me reensinou –, foi a certeza do amor. O amor é o Génesis do mundo. Aos seis anos tinha a certeza disso. Continuo a tê-la, com todo esse tempo que carrego ao peito.

Hoje celebro seis anos de vida.

*Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira no Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio

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