Por Carmo Rodeia
“Rezemos pela Igreja, para que adote a escuta e o diálogo como estilo de vida em todos os níveis, deixando-se guiar pela força do Espírito Santo em direção às periferias do mundo.”
O apelo, que aqui transcrevo, é o do Papa Francisco no vídeo da Rede Mundial de Oração com o Papa para este mês de outubro, em que em Roma estará reunida a Assembleia do Sínodo sobre sinodalidade, à qual estamos unidos, e ao mesmo tempo a Igreja é convidada a viver a 97ª Jornada Mundial das Missões, porventura uma das expressões da dinâmica sinodal da Igreja católica, convocada permanentemente à missão, à escuta e ao diálogo.
Antes da abertura da Assembleia, que se realizará entre 4 e 29 de outubro, sendo a mais abrangente de todas, desde logo com mulheres com direito a voto, foi celebrada uma Vigília de Oração ecuménica, que exprimiu a gratidão pelo dom da unidade e do caminho sinodal, a gratidão pelo dom do outro, a gratidão pelo dom da paz e a gratidão pelo dom da criação, com alocuções ao Cântico das Criaturas, um verdadeiro caderno de encargos, recheado de intenções apostólicas.
O “meu Senhor” é, de facto, o centro e o objecto de todo o cântico, em que todas as criaturas são convidadas a louvar o criador num gesto vibrante de gratidão, que não resulta só dos benefícios que as criaturas proporcionam ao homem, mas do facto de sobre elas se projectar o fulgor do dom maior que Deus nos fez: o dom de Seu próprio Filho, que nos ensina o perdão como forma de amor indispensável.
Gostava de acreditar que é daqui que partimos para o reencontro. O “meu Senhor” do Cântico das Criaturas é o Senhor de toda a Igreja, a sua pedra angular. Olhando para o que nos trouxe até aqui, poderíamos pensar que seria Ele que estava em causa, mas não é.
Tive o privilégio de participar na redação dos dois documentos que constituíram o contributo da Igreja portuguesa para as fases preparatórias desta Assembleia seja nas fases diocesana e nacional seja na etapa continental. Participei na Assembleia da Etapa Continental da Europa em Praga, em fevereiro deste ano.
Em Praga, convivi com sensibilidades, percepções e aspirações diferentes, e mesmo contraditórias, quanto ao modo de viver a fé cristã e da Igreja Católica estar presente no mundo. Apesar da tensão, que resulta necessariamente destas divergências, tive oportunidade de experimentar que, de um modo geral, o ambiente é menos tenso e as trocas de impressões mais abrangentes e construtivas do que, por vezes, nós jornalistas procuramos interpretar. Por isso, seria muito importante que neste Sínodo sobre sinodalidade, a possibilidade de observação dos media, para além daqueles que são os momentos de abertura e encerramento ou de oração, tivesse sido uma opção considerada pela Santa Sé. Lembro-me sempre daquela metáfora de São João João XIII, quando convocou o Concílio, lembrando que as janelas são importantes para vermos para fora e deixarmo-nos ser vistos. Teria sido muito interessante cada um presenciar e tirar as suas conclusões, sem filtros nem agendas. Todos os cristãos, incluindo os jornalistas. Teria sido também um gesto de sinodalidade na relação entre a Igreja instituição e os media, que poderia afastar a ladainha constante dos queixumes de que os jornalistas só dão valor ao que é fraturante. Também era evangelização…
Atrevo-me a dizer que este Sínodo tem três particularidades que o tornam especialmente importante, e para muitos, a razão de ser para o considerarem uma espécie de segundo momento do Concílio Vaticano II.
Desde logo a sua composição, que vai para além de bispos e clérigos em geral, contando com leigos, e sobretudo mulheres, com direito igual de voto, como já aqui sublinhei neste texto.
Por outro lado, a agenda que se antevê a partir do instrumento de trabalho. Temas como a doença do clericalismo, que também contagiou tantas e tantos leigos; a corresponsabilidade que se materializa na participação dos leigos com poder deliberativo nos órgãos decisórios nas várias instâncias da Igreja; o lugar das mulheres na vida eclesial em todas as suas dimensões e níveis para além da simples(?) questão do acesso ao sacramento da Ordem; as implicações do acolhimento de todas as pessoas que procuram a Igreja e o Evangelho, sem restrições ou condenações; o estatuto e condições de vida do clero; a renovação da liturgia e da linguagem da Igreja; as comunidades cristãs e a atenção aos novos descartados bem como o lugar dos jovens na Igreja, ou a necessidades de irmos ao encontro das diferentes periferias existenciais desta mudança de época, são matérias que entrarão no debate (porque estão no documento de trabalho!) e seria bom que pudéssemos ter eco delas sem filtros ou formulações bem intencionadas, mas pouco concretas.
Por último, as conclusões que daqui poderão surgir como orientações para toda a Igreja e que podem ditar um reforço da sua credibilidade ou, pelo contrário, a sua continuada queda e perda de relevância.
Se é certo que o mais importante é deixarmos que o Espírito Santo nos conduza, não será menos verdade que as expectativas criadas, depois da mobilização de toda a Igreja, com mais ou menos sucesso, e das várias posições tomadas pelo Papa através de afirmações públicas, de tomadas de decisão, da reforma da Cúria, entre outras, há um legitimo desejo de que daqui surjam propostas concretas que reflitam o caminho que temos vindo a fazer em conjunto. Tanto mais que não estão em causa dogmas de fé mas antes formas de estar e de ser na fidelidade a Jesus Cristo.
Uma atitude sinodal pressupõe que valorizemos mais o caminho do que a meta mas numa sociedade, marcada pelo mediatismo e pelo imediatismo, a transparência e a clareza do que comunicamos é, deveras, importante. Diante de problemas concretos não podemos deixar de concretizar o caminho para encontrarmos soluções concretas, comunicadas de forma clara.
No encontro com os jesuítas em Portugal, o Papa Francisco afirmou que “A doutrina também progride, expande-se e consolida-se com o tempo e torna-se mais firme, mas está sempre a progredir”.
Gostava, por isso, que no final deste Sínodo, que terá outra Assembleia em 2024 , se esbatesse mais um pouco o fosso, que às vezes parece existir, entre aquilo que o Papa afirma e que tanto cativa, porque nos parece tão próximo de Jesus ( e que, afinal, não é mais do que os Evangelhos nos dizem), e aquilo que a Igreja permite e que, de tão institucional que é, nos parece por vezes tão afastada da realidade e até do reino de Deus, que deve anunciar e concretizar em cada tempo concreto. Se for este o sopro do Espírito que nós sabemos, acreditamos e confiamos que o sopra onde e como quer…