Pelo Pe. Teodoro Medeiros
Não será isso que fica? Com certeza que não: o que salvará um romance (mais um!) do grande ecrã nos tempos que correm? Ficarem juntos? Não se poderem juntar? Um deles morrer? Um dar a vida pelo outro? Viverem em tempos diferentes? Um deles ser muito mais novo que o outro? Pois, teria de ser por uma outra razão qualquer.
Segundo a tradição, ou são comédias (acabam bem) ou são tragédias e não pode haver escapatória ao destino. As primeiras são representadas em forma de U (no meio estão as dificuldades), ou U invertido (no meio a esperança a defraudar). Um exemplo típico de tragédia seria “O Mundo a seus Pés”, (Citizen Kane de Orson welles): sabe-se desde o início que ele morrerá (num rosebud solitário).
Não esquecendo os casos de adaptações de tragédia: “Ran” de Kurosawa é uma adaptação de King Lear de Shakespeare. E Pasolini filmou Medea de Eurípedes com Maria Callas: até hoje não se sabe se a longa repetição de uma das cenas é intencional ou não (com Pasolini tudo é possível).
Pegue-se num “Assalto ao Arranha-céus”, famoso papel de Bruce Willis, e temos um conjunto de eventos que colocam em perigo de vida o protagonista; na realidade, quase o destroem e mais do que uma vez. Nada disso será definitivo; cheio de dores inconsequentes, ele vencerá ao fim. Ou seja, os filmes de ação são formalmente comédias. Interessante.
Como é óbvio, estas distinções aplicam-se apenas à ficção: os documentários seguem regras diferentes. Mesmo nas biografias, não é a mesma coisa narrar Jim Morrison ou Jack Palance. Mas não sejamos ingénuos; que um filme fale da realidade não pode ser desculpa para não ter imaginação (aliás, o biopic tornou-se um género de fronteira).
Dizem os americanos que deve ficar calado quem não tiver algo “nice” a dizer: os cineastas que não levam isso a sério a que se limitam? A exercícios de virtuosismo tantas vezes. É como o sacerdote de quem se diz que fala muito bem mas não se entende o que disse: os excessos na comunicação servem muitas vezes para disfarçar vazios de mensagem.
Até porque não é possível apresentarem-se apenas os factos ou uma hipotética estrutura que os coloque numa certa categoria; há sempre um sistema de valores, de julgamentos implícitos, por camuflados que sejam. Não escolher (no sentido de apresentar leituras) é já oferecer uma leitura mais aberta, menos óbvia, mas que está lá e é muitas vezes atraiçoada.
O “Dúvida,” que colocava frente a frente Meryl Streep e Philip Seymour Hoffman, jogava com isso mesmo: não acusava o padre mas deixava a insinuação no ar. Era o espetador quem tinha de decidir. Mais ainda, o filme escondia qualquer bengala para uma solução concreta. Fica como um esforço honesto mas que desilude quem quer mais respostas.
Um filme como “Ex_Machina” segue um esquema simples: um observador imparcial é chamado para estudar a robot quase humana Eva. Até que ponto estará bem conseguida aquela máquina? O próprio tema convida a avaliarmos os comportamentos de Eva como se fossem nossos. É um jogo de cartas aberto mas é impossível não jogar.
Como se chamam hoje os filmes mistério? São os thrillers, autênticos braços de ferro com a capacidade de intercalar diferentes causas com os mesmo efeitos e reler tudo num passe de magia.
Contratiempo, de Oriol Paulo, é sublime, ao passo que coisas muito mais caras costumam ter mais furos que uma rede de apanhar sardinhas.
Costumam ser gratificantes filmes que não seguem à risca este ou aquele género: que não façam a papa toda, que deixem espaço para que possamos pensar e decidir. Às vezes, está tudo tão mastigadinho que até dá dó. E o retrato das religiões poderia ser um caso de estudo desse fenómeno: quantas vezes não se faz uma espécie de purga do que as religiões têm de mau e nada mais? É como um cómico que só sabe uma anedota boa e a repete todos os dias.
O recente “A Rapariga do Mundo”, do estreante Marco Daniele, é por isso uma pérola rara: expõe a situação e a mentalidade dos testemunhas de Geová, sem cair no ridículo de uma dissecação gratuita. Aliás, até transforma em humor as regras mais fechadas da seita. Notável… e não necessita de aplicar à imagem um filtro que sature todas as cores.
Sair dos esquemas; não repetir o mesmo verbatim; não insistir das mesmas fórmulas cansadas; não aderir aos cânones com simples aceno da cabeça: eis o que é necessário fazer para que a mensagem exista e possa ser maior do que ela mesma. Vale para o cinema e vale, sem metáforas, para a vida e a religião: as verdades não podem vestir sempre as mesmas cores, escuras ou claras que sejam.
A reverência aos modelos pode ser um tumor incurável; Fellini era o maior mas Daniele já fez o que ele nunca fez; Welles era um génio mas DeAngelis mostra-se mais humano. Que sentido faz cristalizar-se na estética do passado? É reverenciável, é certo, mas também tem de viver em tensão com novos trajes.
Daí que “Salvo” (Grassadonia e Piazza, 2013) seja um filme de Máfia com poucas execuções. A lembrar que por detrás de cada estória deverá haver um pouco de redenção, que quem a conta nos quer um pouco bem (e àqueles que narra). O inverso de Sorrentino que celebra o grotesco e, como um miúdo, destrói ao fim os brinquedos e manda todos para casa (que Roma lhe perdoe o mau gosto de “A Grande Beleza”).
Voltando a “Salvo”: um assassino executa alguém de um bando rival e deveria dar também o mesmo destino à sua irmã cega. Mas, quando se aproxima dela, acontece um milagre: ela começa a ver, aos poucos, e ele não consegue cumprir a sua missão. Acabará mesmo por dar a sua vida por ela. Máfia e milagres: como é que ninguém se lembrou disso antes?
A salvação está à solta no mundo, quando se sai fora das regras estabelecidas, do bem passado e do requentado. Como escreveu Leonard Cohen: “I know that I’m forgiven but I don’t know how I know”.