Frei Bento Domingues está nos Açores.
Orientou duas sessões “formativas” em Ponta Delgada e vai orientar duas na Terceira. Para o clero e para leigos. Sempre a partir da Exortação Apostólica A Alegria do Evangelho, do Papa Francisco em quem se diz “viciado”. “O génio dele fá-lo romper tabus” e isso é “fantástico”. Sublinha a “inteligência” de Francisco para recolocar a Igreja no Mundo, fazendo as reformas a partir das periferias.
Nascido em 1934, Em Terras de Bouro, no norte do país, vive atualmente num convento em Benfica, em Lisboa. Defende a ordenação das mulheres- “Que diabo têm elas que não podem presidir a uma eucaristia”- e diz que, “intuitivamente”, acha que o Papa está a preparar terreno para “um concílio”.
Colunista do Público. Conversador fascinante. Espírito livre é um homem de verbo fácil, ou não fosse dominicano, a ordem dos pregadores, prestes a celebrar 800 anos.
Na entrevista ao Sítio Igreja Açores, entre as conferências de São Miguel e as da Terceira, Frei Bento Domingues deixa, ainda criticas, ao excessivo clericalismo que existe na igreja e à “anestesia” dos portugueses, sem que a igreja consiga ser “mobilizadora para dizer basta”.
Sítio Igreja Açores- Como é que vê estes quase dois anos de Pontificado de Francisco?
Frei Bento Domingues– Há quem diga que eu estou viciado nele. E se calhar até estou, mas é importante porque há um antes e um depois do Papa Francisco que é muito óbvio. A agenda mediática e a opinião pública tinham a ideia que a Igreja estava associada a tudo o que havia de pior: corrupção, desvio de dinheiros, pedofilia na hierarquia…toda a gente insistia nestes temas…
Sítio Igreja Açores- Mas há de convir que esses temas eram fortes…
Frei Bento Domingues– Eu não estou a criticar a agenda dos jornalistas e, se quer que lhe diga, até foi bom, porque quando Francisco assumiu o pontificado, a vivência dessa agenda fez com que ele tomasse uma atitude muito sensata: a cada suspeita ele respondia com uma conversa privada com o suspeito e geralmente redundava, sem alarido, no seu afastamento. E é bom olhar para a história. O Século XX para alguns países, como a França, foi um século de muita luta para os católicos que tiveram combates político ideológicos contra uma série de proibições e repressões, desde Pio IX. Aliás, é dessa altura o dogma da infalibilidade do Papa. Os movimentos bíblico, missionário, litúrgico, ecuménico , teológico ou, ainda o social, que apesar de tudo emergiam, eram muito reprimidos. Já nos anos 50 foi a grande proibição dos padres operários e daquilo que era a questão das fronteiras, que este papa agora retomou. Nessa altura havia quem defendesse que se havia de sair da Sacristia, mas os tradicionalistas acabariam por vencer numa primeira fase. Depois apareceu João XXIII e ele fez o contrário.
Sítio Igreja Açores- “Temos de abrir as janelas ao mundo para vermos para fora e deixarmos ver para dentro”…
Frei Bento Domingues- Isso mesmo, mas secundado por uma nova corrente teológica já muito virada para os leigos, embora eles estivessem muito controlados, nomeadamente a ação católica. Desde logo, porque os seus dirigentes eram nomeados e tinham de ter mandato dos Bispos. Resultado: eram sempre a reprodução do clero. Das mulheres nem se falava. O Papa João dá a palavra à Igreja, anunciando o Vaticano II o que foi uma revolução. Tudo o que tinha sido proibido agora era possível. A igreja passa a ser todos os batizados.; a igreja é uma hierarquia de ministérios que servem o bem comum. Isto lança uma turbulência que dá origem ao aparecimento de muitos movimentos, sobretudo na América latina, na América central e em África. Os tradicionalistas que tinham perdido poder com o concilio acabam por se refazer e estudaram as formas de paralisação, votando o Vaticano II ao esquecimento. Mesmo se tivermos em conta o papel de movimentos como os Cursos de Cristandade. Mas, nunca foram preponderantes face aos conservadores, mesmo dentro do laicado.
Sítio Igreja Açores- Então o laicado está sistematicamente condenado a conviver com a hierarquia e a submeter-se a ela…
Frei Bento Domingues– Esse é o grande desafio colocado pelo Papa Francisco. Ele tem dois problemas: reformar a cúria e fazer com que a Igreja não esteja centrada sobre si mesma porque essa seria a maior traição ao Concilio Vaticano II que defendeu a igreja no mundo, nos vários mundos. Ora, Francisco é genial porque dá um salto, longe do populismo que alguns lhe atribuem, mas faz o discurso das periferias. A igreja tem de estar de saída e ir ao encontro do que está abandonado. E, nesta periferia há várias periferias, desde os pobres, aos excluídos… ele começa a ver o sistema económico-politico que gera morte e cria duas palavras: os sobrantes e os descartáveis. Ou seja ele mostra que a economia e o sistema globalizado criam periferias. Ora, nem a Doutrina Social da Igreja denunciava isto.
Sítio Igreja Açores- Ele conquista então o mundo, vira-se à procura dos cristãos?…
Frei Bento Domingues- Sem dúvida, o que levanta um problema. Eu julgo que o Papa está a preparar um concílio, mas não quer para si o que aconteceu a João XXIII. As estruturas são pouco flexíveis mas ele, graças à sua perspicácia, vira-se para as periferias e contrapõe à agenda oficial, alimentada pelos media, a sua própria agenda que é ver a Cúria a partir das periferias. Isso é visível quando visita Lampedusa, participa na cerimónia do lava pés, etc…
Sítio Igreja Açores- A Igreja habituou-nos a um ritmo próprio que, convenhamos, é lento. Às vezes Francisco dá-nos a sensação de que é mais rápido que esse tempo da Igreja. Corremos o risco das veredas serem abertas mas que a ervas daninhas voltem a ocupar o espaço que é do caminho?
Frei Bento Domingues- Esse é um problema e há muita gente à espera disso. Só que o génio de Francisco empurra-o a romper com tabus. Ele tem conseguido conquistar uma base de apoio muito significativa que vai para além do mundo católico. Portanto, ele pode nem ter a hierarquia mas tem as pessoas com ele, que dizem com muita frequência: este é dos nossos. De resto, até fez algumas alterações ao nível dos cardeais e percebendo que andavam a germinar sementes que o queriam afastar, no Natal brinda a cúria com um cardápio de doenças, apresentado de forma frontal e incisiva. Isto legitima qualquer ideia que as pessoas possam ter no sentido em que, se o Papa é o próprio a ver os problemas que estão dentro de casa, nós quando olhamos para eles, vemo-los com os olhos do Papa. Isto é de um enorme e saudável atrevimento, tal como a carta aberta aos cardeais .
Sítio Igreja Açores- Então o que é ele quer dizer com tudo isto?
Frei Bento Domingues- Julgo que ele quer liquidar o sentido da dominação, que é mais que poder, dos cardeais que devem prestar um serviço e não exercer o poder. Há, de facto, um risco nisto tudo porque o terreno está minado e a armadilha está do lado das mulheres, que constituem como eu já disse a periferia das periferias da igreja. Elas não têm acesso à orientação da igreja; parece que elas estão a mais na igreja…
Sítio Igreja Açores- Mas são a maioria…
Frei bento Domingues– Evidentemente não só em número mas também em comprometimento. Já imaginou se elas fizessem greve? Parava tudo (risos)…Quando foi a comissão teológica, a primeira coisa que o Papa disse foi que havia poucas mulheres e perguntou mesmo como se aferia a sensibilidade feminina…
Sítio Igreja Açores- Aliás o tema tem sido recorrente, voltou inclusive a ele nas Filipinas…
Frei Bento Domingues– Eu julgo que ele está a querer criar um ambiente favorável para lutar contra a exploração da mulher na sociedade embora tenha a consciência absoluta de que é na igreja que as mulheres não contam.
Sítio Igreja Açores- Mas Nossa Senhora contou e conta…
Frei Bento Domingues– Se calhar é por isso que hoje as mulheres não contam. Nossa Senhora concentrou todos os louvores e todos os altares e Maria de Nazaré, a mãe de Jesus, A que se converteu ao projeto de Deus, foi entronizada. Só que esta entronização substituiu as mulheres e esse é o drama. Nossa Senhora está na plenitude de Deus, porque ela deu-se ao projeto de Deus; ela é quem cuida da igreja…
Sítio Igreja Açores- Então como é que se devolve esse poder de Maria às mulheres?
Frei Bento Domingues- Esse é o grande desafio e o Papa sabe que é. Só que também sabe que não é por decreto que se fazem reformas porque decreto que vem é decreto que pode ir.
Sítio Igreja Açores- Pois, também há a lei da paridade no código cívil português e a verdade é que mesmo no trabalho para tarefa igual ainda há salários diferentes…
Frei Bento Domingues- Pois é…Só através de uma mudança cultural é que se vai lá e o Papa Francisco sabe disso. A cultura eclesiástica é de exclusão da mulher; a que ele está a criar é a da inclusão. Com um aspeto muito mais revolucionário que são os aforismos que ele vai criando. A questão da procriação, por exemplo… o “isto não pode ser como coelhos” teve um efeito extraordinário e rompeu absolutamente com um tabu. E ele tem muito estas imagens.
Sítio Igreja Açores- O próprio Papa pede aos padres que falem por imagens. Na Exortação, a propósito da homília ele diz a mensagem deve ser uma ideia, um pensamento e uma imagem…
Frei Bento Domingues– É isso…e algumas delas são inconvenientes, mas repare ele, intelectualmente, é muito articulado, muito baseado em São Tomás de Aquino. A diferença é que ele faz falar tudo o que antes fazia emudecer; o que acontece é que antes havia um teologizar para ocultar e ele tem um teologizar que desconstrói e isso é fantástico. A desconstrução de pseudo evidências, e a ajuda às pessoas a verem, é algo de extraordinário e que muitos quiseram desfazer durante o período pós concilio. Mas, é isso que é verdadeiramente notável nele. Naturalmente que tem muitas divergências, muitas pessoas contra ele…
Sítio Igreja Açores- Desde o Concilio que temos um lugar próprio para os leigos. Porque é que esse lugar não é preenchido, ou seja, porque é que ainda há tanto clericalismo, como o próprio fala diz?
Frei bento Domingues- Isso resulta de uma cultura, é a arte de conceber e de viver em igreja. A Lumen Gentium é produto de duas correntes teológicas uma que fala de sacerdócio e outra que fala da hierarquia de ministérios. A questão dos leigos é muito radical: a igreja é o conjunto dos cristãos, na linha do que dizia Santo Agostinho: convosco sou cristão, para vós sou bispo…só assim estão todos na mesma condição. Só que os leigos começaram a ser representantes da fauna: um operário, um intelectual, um técnico e por aí fora. Hoje, o Papa Francisco vem colocar a questão de outra maneira, quase de pernas para o ar. Veja, novamente, o problema das mulheres. Quando se define qualquer coisa para as mulheres faz-se sempre do ponto de vista dos homens, porque elas nunca decidem nada…acresce que há também uma certa clericalização das teólogas que reproduzem mimeticamente o pensamento masculino…
Sítio Igreja Açores- Tal como algum laicado que reproduz comportamentos do clero…
Frei Bento Domingues- O Papa está sempre a alertar para isso…
Sítio Igreja Açores- Retomando a sua intuição de que o Papa está a preparar um concilio. O que é que podemos esperar dele, ou seja, que temas vão estar na ordem do dia?
Frei Bento Domingues– Para já ele teria que vencer o susto que isso iria provocar nalguns sectores da Igreja. As mulheres vão ser determinantes porque senão a igreja não está no mundo contemporâneo. E esse, é a meu ver, o grande drama. Há sectores da Igreja que não querem uma Igreja inserida nem no mundo contemporâneo nem nas periferias.
Sítio Igreja Açores- Mas Jesus fez o oposto…
Frei Bento Domingues- Pois… conhecia a cultura que lhe era contemporânea e jogou com ela. De novo as mulheres: Jesus sabia que elas na sua cultura não contavam, mas ele contou com elas porque foram elas que salvaram o cristianismo. Os homens andaram sempre à procura de tachos; as mulheres nunca pediram nada e, quando viram que estava tudo perdido, os homens fizeram-se à estrada e foram elas que continuaram a seguir Jesus. Que diabo há nas mulheres para elas não poderem presidir a uma Eucaristia?
Sítio Igreja Açores- Em seu entender o que é que há?
Frei Bento Domingues- Nada… o problema é outro… e mais grave… as mulheres ao tomarem cada vez mais consciência de que não contam, não só porque não têm poder mas porque a sua opinião não é tida em conta, desligam-se e podem deixar de servir e isso não é bom. Porque elas servem de facto a igreja e a paridade com os homens tem que caminhar ao mesmo ritmo. Havia um padre da minha aldeia que depois foi bispo e que acerca da sociedade tinha um modelo muito interessante: o modelo varão, manda ele e ela não; o modelo varunca manda ela e ele nunca e o modelo varela, manda ele e ela. Ora este é o modelo cristão, que resulta da ação de Deus que criou o homem e a mulher. Se não entendermos isto então não entendemos nada e é tudo uma ficção. Atraiçoamos mesmo o próprio projeto de Deus, adulterando a sua palavra e o seu modelo de sociedade.
Sítio Igreja Açores- Qual é, então, o grande desafio da Igreja?
Frei bento Domingues- O que o Papa está constantemente a dizer: a Igreja não pode ser auto referente porque é para o mundo e para a sociedade. Os cristãos ajudam o mundo – não os tire de lá; guarda-os do mal, dizia Jesus. Mas, depois, dentro da Igreja- e atenção que esta é uma palavra gasta no sentido em que quando falamos dela pensamos logo na estrutura hierárquica- mas, dizia eu que dentro da Igreja, há uma calda de cultura, de imaginário, de história e de tabus que enquanto não levarem um estoiro não se avança.
Sítio Igreja Açores- E Francisco é capaz de “dar o estoiro”?
Frei Bento Domingues– Eu acho que ele não tem feito outra coisa… desde logo quando escolheu o nome de Francisco e o modelo de Francisco de Assis. Dentro da sua congregação podia ter seguido São Francisco Xavier, um missionário. Mas não…escolheu o de Assis, que nem sacerdote foi. Portanto, está claro de que lado está o Papa. Isto é simbólico mas é um programa que está do lado dos leigos.
Sítio Igreja Açores- Mas sendo um papa com um programa tão próximo do de Jesus porque é que há tanta gente dentro da Igreja que não gosta nem dos estilo, nem das posições e muito menos de algumas opções?
Frei Bento Domingues– Porque ele está a agitar consciências e agora até se agarram ao facto dele já ter uma certa idade e de, neste entretanto, poderem reorganizar-se. Como foi no Concilio. Aliás, o que mais noto é também clero muito jovem a pensar assim. A minha esperança, pessoal, é que o Papa Francisco é como Jesus preconizava: simples como as pombas e sagaz como as serpentes. Mas precisa de apoio, sobretudo do povo cristão. O mundo é uma ovelha sem pastor. Espero que ele consiga ser esse pastor.
Sítio Igreja Açores- A crise veio agravar ainda mais essa orfandade. Qual é o papel da Igreja no meio de tudo isto?
Frei Bento Domingues- Veja, o caso do nosso país que foi colocado na periferia. Nós sempre fomos cosmopolitas, o problema é que estamos a assistir a uma destruição do país de uma forma impávida e serena. Oiço muitas vezes as pessoas a dizerem que nós vivíamos acima das possibilidades. Mas este mundo é que produz as periferias e quando indica remédios eles são autênticos venenos.
Sítio Igreja Açores- E qual é o antídoto da Igreja?
Frei Bento Domingues- Nós temos de dizer basta! É pelos frutos que se conhece a árvore. Se esta organização social dá estes frutos, caindo sobre quem estava a arranjar a sua vida, então temos de dizer alto lá e vamos ver se isto é inevitável. O que era estruturante na sociedade portuguesa, por exemplo, ao nível do ensino- e aí tanto contavam homens como mulheres (risos)- foi condenado a ir-se embora…
Sítio Igreja Açores- Então isso deveria ter provocado um clamor mais veemente da Igreja?
Frei Bento Domingues- Com certeza. Não o fizemos e até contámos com a ajuda dos órgãos de comunicação social, que se conformaram lembrando que foi mau, mas podia ser pior. Tudo isto obedece a uma lógica que é grave e a Igreja, não sendo uma instituição económica e social de peritos, tem isso tudo e tem de contribuir para o debate, convocando todos os fieis, não para substituir os políticos mas para dizer que há caminhos alternativos; não para dar receitas mas para colocar questões. É certo que a Igreja no plano assistencial fez muito, matou a fome a muita gente. Mas, como disse o Papa na visita à FAO, as pessoas não precisam de esmolas; precisam de dignidade. Com esmolas podemos roubar a dignidade às pessoas porque é reduzi-las à dependência. Isto é anti humano, não é o primado da pessoa humana.
Sítio Igreja Açores- Com a agravante delas passarem a ser números: tantos do RSI, tantos do desemprego…
Frei Bento Domingues- Essa é a segunda abstração portuguesa…Essas pessoas, pobres, dependentes, excluídas, não contam; apenas servem para acentuar as estatísticas que revelam, entretanto, o aumento do fosso entre os que têm tudo e os que não têm nada. E no meio estão todos aqueles que não falam porque têm de dar de comer aos filhos. Ora, a igreja não soube resolver este susto que anestesiou os portugueses, fomentando o debate, a interrogação contra a austeridade. É isto que falta fazer e acho que apesar de tudo ainda podemos ir a tempo, embora seja muito difícil… mas o Evangelho dá-nos esta mensagem de esperança.