O pontificado do Papa Francisco é fruto de uma vida dedicada às periferias que o acompanhou ao longo dos tempos, refere oi cardeal-patriarca emérito de Lisboa

Entrevista a D. Manuel Clemente, cardeal-patriarca emérito de Lisboa

Foto: Igreja Açores/CR

D. Manuel Clemente, que reza para que o Papa possa melhorar rapidamente e possa retomar em plenitude o seu ministério petrino, afirma que o próximo conclave terá de ser cuteloso na escolha de um novo sucessor de Pedro: “tem de escolher alguém que esteja muito a par da realidade mundial, que não se aprende de m momento para o outro.

O bispo emérito de Lisboa esteve nos Açores a participar nas Jornadas de Formação do Clero, centradas na Esperança, que não engana. Entrevistado pelo Sítio Igreja Açores- a entrevista na integra pode ouvi-la no próximo domingo depois do meio-dia no Rádio Clube de Angra e na Antena 1 Açores- o prelado fala da doença do Papa, do perfil que se lhe seguirá e do Jubileu, que é uma oportunidade para “transformarmos os sinais dos tempos em esperança para o mundo”.

 

Estas jornadas surgem num contexto de jubileu, que já é um momento de graça, e convidam-nos a viver também a partir de uma chave de leitura, que é a nossa própria conversão. Como é que podemos ter esperança neste tempo?

Bem, a esperança, em termos cristãos, é uma virtude teológica, não é? Vai muito além das expectativas humanas.

A esperança, como virtude teologal, como nós dizemos, portanto, que vem de Deus e que nos leva para Deus, é isso mesmo, é algo que vai muito além de nós, também vem muito atrás de nós, impulsiona-nos sempre, e é aqui que, no fundo, se movia Jesus Cristo, não é? Até ao fim, mesmo que lhe pusessem um obstáculo no caminho, não é? E até ao fim, entrega-se nos braços do Pai e agora está vivo e continua connosco. Portanto, a nossa esperança tem outra garantia, e não nos faz fechar o coração, nem deixar que os braços se cruzem, seja qual for a situação.

 

E há exemplos disso em todo o mundo, sobretudo de cristãos que por causa da sua fé são perseguidos…

Sim, verificamos isto em muitas latitudes do mundo atual, em cristãos e cristãs, que conseguem perseverar e andar para a frente, mesmo quando tudo ao lado parece ruir. E, portanto, eles criam futuro pela sua maneira de estar, de esperar e de continuar, e deitar a mão ao que podem deitar, e depois isso multiplica-se e vai garantindo o futuro.

 

 

A tal performatividade de que falou a partir da Encíclica Spes Salvi do Papa Bento XVI…

Como é que se concretiza depois, do ponto de vista prático, porque , às vezes, olhamos para as nossas comunidades, olhamos para nós próprios, não é, e do ponto de vista individual, vemos que das três virtudes teologais, é talvez aquela que nós pior tenhamos trabalhado.

É…A fé tem um impacto, porque é nós rendermo-nos e acreditarmos na verdade de Jesus Cristo. A caridade, por outro lado,  também tem consequências muito práticas, que é a maneira como nós estamos diante dos outros e os servimos. A esperança é que, no fundo, mobiliza tudo isto, porque garante que isto vai por diante. Ela faz com que o resto aconteça.

Daí que, se nós queremos realmente viver a esperança, então vivamos a esperança. E, diante de qualquer circunstância, olhemos onde é que há uma ponta, peguemos e andemos para a frente. Porque, depois, fazendo isso, a nossa esperança cresce.

É exatamente na medida que alimentamos a esperança dos outros, que a nossa esperança cresce também, porque ela é performativa. Ela realiza aquilo que diz, e diz aquilo que realiza. E, quando isto falta, pois, já não estamos a falar da esperança cristã.

 

O mundo está preparado para ouvir esta esperança, que não é, como o Senhor diz, uma fezada, um desejo, mas uma pessoa, como o Papa Bento XVI sublinha na Spe Salvi?

No mundo que eu sou estará.

como parte do mundo que eu sou, não é? Eu sou um dos oito bilhões de seres humanos. Portanto, como mundo que eu sou, na parte que me cabe, acho que sim.

Julgo que o mundo não só está preparado como até está sequioso de ter uma verdade destas, não só pela frente, mas em si próprio. E repare que há muitos homens e mulheres que também me comunicaram isto. Com certeza que Deus também passou por eles para chegar a mim.

 

E, pelo seu testemunho, há muita gente que acredita. Nós cristãos até parece que somos, em termos estatísticos, a maior confissão religiosa do mundo. Há muita gente que acredita nisto. E não só aqui neste sentido, neste sítio simpático onde nós estamos, conversando entre padres, etc. Mas em muitos sítios onde é muito difícil ser cristão, onde é proibido  onde se é perseguido. O cristianismo é hoje a religião mais perseguida do mundo e com mais mártires do mundo. Praticamente, todas as semanas morre alguém por ser cristão.

E, nas nossas fronteiras, há muita gente que continua, que persiste, que não deixa de o ser. E, exatamente com essa persistência, cresce na esperança e também acaba por dar esperança a outros.

 

O Senhor Patriarca insistiu muito na necessidade de lermos os sinais, como nos convoca a Gaudium et Spes. O que nos dizem estes sinais hoje sobre o mundo?

Desde logo, interrogam-nos muito, não é? Interrogam-nos muito. Porque, por um lado, são apelos, e até apelos angustiantes, a uma correspondência positiva, não é? Tudo quando se passa. O Papa Francisco fala muito disso na Bula deste Jubileu : transformar estes sinais do tempo, estas aspirações, estes apelos, muitas vezes trágicos, que o mundo nos faz, em sinais de esperança pela nossa presença e pela nossa atuação.

E pela nossa resposta, onde pudermos chegar, mesmo em termos pessoais e nos sítios onde estamos, há tanta desesperança, às vezes, à nossa volta, tanta depressão, tanta coisa que imobiliza as pessoas e que fecha os corações, sempre sinais de esperança nessas situações, e é o que o Papa Francisco nos diz. Olhemos o que está à nossa volta, tomemos isso como sinais deste tempo, que muitas vezes são sinais angustiados, e transformemos pela nossa presença, pela nossa atuação, em sinais de esperança. Demos a volta aos sinais do tempo, quando eles são, passo o termo, negativos, e transformamos em sinais de esperança pela nossa presença e pela nossa atuação.

Portanto, lá está, outra vez tomando o adjetivo do Papa Bento, fazendo disto performativamente, não só dizendo, mas atuando.

 

Nós temos, na Igreja, vivido também tempos difíceis, como no passado também se viveram outros tempos difíceis, e se calhar bem piores do que os nossos. Nós temos sempre a tentação de considerar que o nosso é pior, porque o nosso presente é sempre aquilo que nós vivemos, é o nosso hoje. A pergunta que eu lhe faço é, se depois de uma pandemia, depois de tantos ataques à Igreja, alguns por culpa própria, podemos, efetivamente, também nós, enquanto instituição, olhar para o mundo com sinais de esperança, no sentido de nos tornarmos novamente relevantes e parceiros credíveis?

Com certeza, e até nem precisamos sair de Portugal para termos isto dentro dos olhos de uma experiência recente, que foi a Jornada Mundial da Juventude. Toda a gente ficou abençoada, mesmo aqueles que estiveram em casa à sua preparação, e muita gente, passo o termo, de fora, e até não cristãos, e nos media, foram ultrapassados pela pujança daquele acontecimento. Como é que um milhão e meio de jovens vindos de todo o mundo vivem aquela semana com aquela alegria, com aquele entusiasmo, com aquela presença, isto é, obviamente, um sinal de esperança, e muito positivo, e uma esperança performativa, porque na vida daqueles que viveram este acontecimento, certamente se gera futuro, e voltam para as suas terras, para esse mundo além, com uma experiência viva no seu coração, que depois os motivará ao longo da sua existência, de certeza, porque estas recordações também são performativas.

 

Vivemos um tempo, também, de expectativa, de suspense, quase, com esta doença do Papa. Como é que podemos perspetivar este final de jubileu, que ainda está tão no seu início, mas que é tão intenso, e que exigirá uma presença permanente do Santo Padre?

Pois, para já, estejamos com Deus, que quer o bem de todos, e peçamos para que as coisas corram da melhor maneira, antes de mais, com a saúde do nosso querido Papa Francisco. E depois, uma vez que ele recupere a saúde, ver como é que ele a recuperou, se é totalmente, se é parcialmente, e ele próprio terá consciência sobre se tem ou não tem condições por prosseguir no Ministério Petrino, e prosseguindo, se é da mesma maneira, se é limitada a atividade, porque, efetivamente, o programa que ele próprio criou para este jubileu é extremamente preenchido, forte e exigente. Todas as semanas existem jubileus e não são apenas celebrações mas é estar com as pessoas, é cumprimentá-las, é deixar-se cumprimentar, e tudo isso é um esforço físico grande. Como eu costumo dizer, às vezes, são dias sem pés nem cabeça, quando chega a noite, já nem temos pés, porque se esteve muito tempo em pé, e já não temos cabeça, porque já se viu tanta gente, já se falou com tanta gente, que já não se tem cabeça, até para conciliar o sono. Ora, isto repetido por um ano inteiro, ainda estamos no segundo mês do ano, é realmente muito forte. Portanto, sobrevivendo à doença, como esperemos que sim, esta doença que agora o atacou, ver depois como é que sobrevive, se sai em condições e o que é que ele quer fazer, e nisso o Papa é absolutamente consciente e responsável para seguir da melhor maneira.

 

Quando houver o próximo conclave, será pela primeira vez cardeal eleitor. Como é que, a esta distância, e olhando para estes sinais concretos do tempo, olha para esta questão?

Para já não tenho pressa nenhuma, não é? Irei ao conclave ou não, até podem passar mais três anos e tal, e depois deixarei de ir. Mas, se existir, lá vou, com esta mesma simplicidade, com que nós devemos estar diante de Deus, para que a sua vontade se cumpra, e a sua inspiração se concretize.

 

Não quero fazer memória nem antecipar rigorosamente nada, mas pergunto-lhe, o que é que destaca deste pontificado que o fez cardeal e o fez Patriarca de uma Igreja que acolheu duas vezes o Papa?

Eu guardo do Papa Francisco uma fortíssima impressão de experiência humana, cristã e sacerdotal. Aliás,  se nós lermos com atenção esta auto-biografia, que ele publicou há pouco tempo, realça muito que tudo quanto ele fez nesses anos de pontificado, vem na continuação direta do que aconteceu com ele antes desses anos de pontificado. Ele chegou ao pontificado com 76 anos, mas continua agora, até aos 88, que já leva, aquilo que pouco e pouco foi crescendo nele. Como pessoa, tem a sua origem familiar, a sua presença desde pequenino junto de muita outra gente, gente com vida, enfim, mais fácil e gente com vidas muito difíceis.

Ele sempre privou com todo esse tipo de pessoas e foi crescendo com elas depois da sua formação escolar. Nos Salezianos, baixando mais tarde os seus estudos nos jesuítas, até ser padre jesuíta e por aí fora. Depois da sua atuação como jesuíta, quer nos colégios, quer como provincial na Argentina, naqueles tempos difíceis, terríveis, da ditadura militar na Argentina.

Portanto, há ali uma personalidade que se vai afirmando e que se vai definindo sempre no sentido que nós temos visto agora. E mesmo depois como arcebispo de Buenos Aires, até ser Papa, quando se julgava que ia ser emérito.

 

E as áreas de atuação?

Olhe, é muita atenção aos pobres, muita valorização do povo e da sensibilidade popular e da religiosidade popular, muita presença em todas as periferias que precisam de ser acompanhadas.

Isto era tudo o que ele já fazia e aquilo que depois, como papa, nos incentivou sempre a fazer. Desde a sua primeira encíclica Evangelli Gaudi, onde está o programa todo, não é?

Mas quando nós vemos a autobiografia dele, percebemos que isto vem tudo numa enorme continuidade e por isso os cardeais que o elegeram sabiam também quem é que dava para eleger.

Foi isso que os cardeais quiseram, e ainda bem que quiseram, porque  trouxe à igreja, digamos, aquela atmosfera mais alargada, própria da América Latina, de uma igreja mais popular e mais presente nestas periferias. Isto é um contributo inestimável que ele nos tem dado e que ele nos deixa.

 

Não vou cometer a indelicadeza de lhe pedir uma profecia ou de sequer antecipar o futuro. Peço-lhe apenas que, sendo um historiador, sendo um homem da igreja, a partir destes sinais na Europa, na Ásia, em África, se poderemos continuar a esperar que o Espírito Santo possa escolher de outro continente um futuro Papa.

Dá-me a ideia que, exatamente por essa realidade que diz, vai estar muito presente a necessidade de se escolher alguém que esteja muito a par da realidade mundial.

Isso creio que sim, porque depois não é coisa que se aprenda numa semana ou num mês, não é? Por muitas informações. É preciso alguém, e existe certamente no Colégio Cardinalício gente, pessoas, preparadas nesse sentido, que estejam muito a par da realidade mundial, como ela se apresenta agora, na sua complexidade, também nas suas aplicações políticas, sociais, culturais. É preciso ser alguém, que esteja muito a par disto.

Porque , está claro, a maior parte de nós, cardeais, eu falo por mim, e julgo que também falo por muitos, estamos muito circunscritos à realidade nacional, onde nós vivemos, onde nós exercemos o nosso trabalho, o nosso ministério. É preciso alguém que, com certeza, também passando por aí, ou não, tenha uma panorâmica muito larga e, ao mesmo tempo, muito informada acerca disto, porque aqui não se pode dar passo sem falso.

 

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