Por Carmo Rodeia
Assinala-se esta segunda feira, dia 3 de outubro, o primeiro aniversário desde a assinatura, em Assis, da carta-encíclica do Papa Francisco, Fratelli Tutti, ou seja, Todos irmãos.
Chamar encíclica a este documento, com o devido respeito é pouco. O documento é um texto indispensável e sobretudo revolucionário no convite que nos faz e sobretudo nas entrelinhas que deixa sobre o caminho da paz, da harmonia e da fraternidade, fazendo-nos corar a todos de vergonha pela forma como não temos sido capazes de trilhar e ajudar a trilhar este caminho.
A carta-encíclica ‘Fratelli tutti’, sobre a fraternidade e a amizade social, foi assinada simbolicamente em Assis, na véspera da memória litúrgica de São Francisco.
O texto dedicado à fraternidade e amizade social apela a uma “globalização dos direitos humanos mais essenciais” e propõe a redescoberta de uma “dimensão universal capaz de ultrapassar todos os preconceitos, todas as barreiras históricas ou culturais, todos os interesses mesquinhos”.
Trata-se, efetivamente, de um texto marcante, corajoso e, sobretudo, de um texto que a todos nos compromete, implicando-nos na transformação do nosso mundo.
Já aqui o escrevi no passado que nós cristãos não soubemos ser herdeiros da revolução francesa na defesa da fraternidade universal porque a remetemos para a esfera individual, ao contrário do que aconteceu com a liberdade e a igualdade. Mas a verdade é que sem a fraternidade as outras duas ficam coxas.
E não, não se trata de um texto utópico porque o texto o que nos pede é que abracemos a fraternidade sob pena de, mais dia menos dia, andarmos todos uns contra os outros. Sim, porque, na verdade, a memória do homem parece ser curta e a sua capacidade de aprender com os erros do passado muito estreita. As nossas terras de liberdade estão cheias de exemplos.
Como alguém dizia recentemente vivemos uma amnésia de sentido comunitário, para a qual temos uma especial propensão, anestesiada sempre pela firme convicção de que nada nos falta e, por isso, tudo podemos.
É bom que não percamos de vista que os direitos humanos, ainda hoje, não são universais para toda a gente. Veja-se o mais recente exemplo que o Afeganistão nos oferece, depois do regresso dos Talibã.
Por outro lado, a fraternidade é o resultado de uma construção ética. Ninguém é irmão do outro só porque sim, embora o devesse. Veja-se a forma como olhamos para os refugiados, como nãos os queremos connosco, porque desconfiamos, porque não integramos ou, simplesmente, vivemos apavorados de medo.
Destemido na forma e no conteúdo, propondo- atrevo-me- uma verdadeira revolução, Francisco como que nos empurra para um mundo global, aberto, a partir do amor universal. A isto chama-se recolocar a vida como prioridade, em detrimento da propriedade.
A “política melhor” é uma outra das reflexões presentes na encíclica, analisando o populismo, que provoca manipulação, demagogia e exacerba os nacionalismos, e o liberalismo radical, baseado na economia e o indivíduo, fazendo com que a comunidade e o social não existam. O papa lembra que a verdadeira política é aquela que busca abrir processos e não conseguir frutos imediatos.
O texto, que também aborda a necessidade de reconhecer as feridas, do perdão baseado na memória, lembrando não há guerra justa, fala-nos da necessidade de redescobrir a fraternidade entre religiões.
A ausência da fraternidade é algo gritante, que implica uma grande conversão, uma grande revolução. E só será uma utopia se a pusermos na gaveta, como fizemos tantas vezes com outros documentos do magistério, ou até, por vezes, com o próprio Evangelho de Jesus.