Por Carmo Rodeia
Os nossos sentidos são vias de acesso a Deus. Caminhos que nos conduzem a uma maior intimidade com Ele, mesmo que por vezes não tenhamos consciência disso.
Há seis anos que não participo presencialmente nas festas do Senhor Santo Cristo, depois de mais de 20 a calcorrear os caminhos do Senhor, no sábado e no domingo da Sua festa, a que acrescentava voltas e voltas sem conta nos tapetes em redor do campo de São Francisco.
Sigo-as à distãncia porque preciso de as relatar aqui neste Sítio Igreja Açores; sigo-as pela televisão num misto de sentimentos: o coração apertado mas igualmente cheio. Apertado, por não estar no Campo do Senhor, a fazer-lhe companhia mas, por outro lado, cheio, porque sei que Ele me faz companhia, sempre.
Posso não viver o que a festa me dava- a cor dos tapetes, o odor das flores, os reencontros perdidos de anos, os arrepios diante da nossa pequenez numa devoção tão grande, os cheiros das velas, do incenso…Mas sinto no coração o cheiro e o sabor de Deus.
É impossível pensar um caminho de fé que não tenha a ver com os sentidos. Com o que ouvimos, o que vemos, o que tateamos, o que nos chega através do odor, muitas vezes invisível, ou então do sabor de Deus, mas aprendi, pela força das circunstâncias, a procurar relativizar as coisas. Desde logo por motivos profissionais já que a Festa do Senhor Santo Cristo coincide quase sempre com o 12 e 13 de maio, tempo de afazeres em Fátima. Os sentidos são importantes, mas o coração é maior, como o Amor que vence distâncias e mitiga a solidão.
No ensaio ‘A Mística do Instante’, o cardeal Tolentino Mendonça , que este ano deveria estar a presidir à festa, o que certamente seria um momento inesquecível, mais um que guardaria na memória do coração, sustenta que há um Evangelho que “só a pele apreende”, que “a fraternidade se exprime também pelo tato”, escrevendo que “o pão da Eucaristia é o pão de mil sabores” e que “o odor permite uma aprendizagem do invisível”. E, acrescenta: “é necessário fazer um caminho com os sentidos, não circunscrevendo a procura espiritual à audição e à visão”. A audição que “se faz com os ouvidos do coração” e a visão “vigilante de quem escuta o dito e o não dito”.
Cada vez tenho menos dúvidas sobre a importância da dimensão espiritual na vida de uma pessoa. Na minha vida, mas na concreta e não numa espécie de abstração. Uma vida espiritual que não se conforma com ritos, que não foge às questões imediatas que o quotidiano levanta, que me confronta com as minhas misérias e fragilidades, sobre o que sou e que tantas vezes sacudo e adio, por vergonha ou por comodidade.
Esta noite, a seguir o programa da RTP Açores sobre a festa que não tem luzes mas tem o Ecce Homo a olhar para nós, para mim, através dessa Imagem inigualável, que é a Imagem que se venera em Ponta Delgada, no Convento da Esperança, lembrei-me do primeiro ano em que participei na procissão e nas festas. Lembrei-me de cada uma das vezes, e foram muitas, em que percorri os caminhos de Ponta Delgada, atrás da Imagem. Hoje, fi-lo, novamente e só através da televisão, como milhares e milhares de açorianos, pelos passos do coração. Não lhe fiz companhia, mas senti-me acompanhada. Talvez esta seja a maior certeza de uma peregrinação. Mesmo feita em frente à televisão.
Bom fim-de-semana e `boas festas´.