O Cónego António Rego, a partir de Roma, relembra o papa que sacudiu ventos de leste e se empenhou na construção da paz entre os homens e o mundo.
Passei ontem à tarde junto daquelas duas janelas.
Estão fechadas com ar de casa desabitada.
Todas as noites que passava pela praça de S.Pedro em Roma, olhava-as e percebia se o Papa ainda estava a trabalhar no seu Gabinete.
Vi-as fecharem-se com a partida de Bento XVI para Castelgandolfo há pouco mais de um ano.
O Papa já não mora aqui.
Está noutra casa onde cheguei a dormir durante alguns trabalhos que fiz em Roma.
Esta manhã andei por corredores do Vaticano à procura do local de comentários para a Missa do próximo domingo.
E, recolhida a documentação, confirmadas as credenciais, entro na Sala Paulo VI ou Nervi, onde está a sala de Imprensa para momentos extraordinários.
À hora que cheguei, cedinho ainda, posso escolher mesa.
Mais de 12 televisores ao longo da sala, o ruído habitual dos jornalistas (felizmente que acabaram as matracas das máquinas de escrever onde ainda me lembro de ouvir um concerto de castanholas metálicas a escrever notícias para todo o mundo).
Agora, computadores, ipads, vão batendo serenamente teclas, enviando fotos e, dizendo em não sei quantos smarts , notícias em todas as línguas.
Quase igual ao que aconteceu com a eleição do Papa.
Diante de mim, estão dois enormes painéis a preto e branco.
Um, com os olhos enormes e vivíssimos de João XXIII, um toque acentuado no esboço do seu sorriso. O outro, da mesma dimensão, de João Paulo II.
Nem sei como começar a descrição. O rosto um pouco inclinado, os olhos carregadamente cerrados, as rugas acentuadas, o cajado de pastor, encostado ao rosto, e a mão esquerda a segurá-lo quase violentamente, alterando as linhas habituais.
Diríamos que é uma foto retocada que nunca passaria num passaporte ou em qualquer documento identificativo.
Mas não precisa de legenda.
Ninguém deixaria de identificar João Paulo II quando parece trazer o mundo às costas.
Isso mesmo.
Tomou sobre si o peso do nosso mundo.
Sendo um homem que transmitia alegria, confiança, fé, capacidade de recomeçar, assumia tudo isso como um dever intransmissível e por isso o não descartava nem deixava por contra de outrem.
Acompanhei João Paulo II em muitos momentos, mais de 20 viagens ao estrangeiro, desde Santiago de Compostela até Seoul e muitos países de África. Mas lembro uma apenas. A São Tomé. Como sempre, os jornalistas vão à frente (exceto quando vêm no mesmo avião do Papa como me aconteceu quando veio a primeira vez a Portugal).
O povo foi ao aeroporto de S.Tomé receber João Paulo II. E depois correu para uma esplanada para o local da celebração.
O Papa chegou primeiro e teve de esperar pelo povo.
Quarenta graus. Nem uma sombra.
O carro chegou ao recinto, parou e aí esteve não sei quanto tempo à espera que os cristãos chegassem para a celebração.
Parecia um Getsemani.
João Paulo II tinha o rosto quase coberto com grossas gotas de suor.
Lembro-me que andei a filmar à volta do carro.
Parei ao lado bem próximo.
Ele olhou para mim como que a dizer: esta cruz é minha. E teve a seguir uma expressão semelhante à deste painel alto, mesmo na minha frente na sala de Imprensa.
É a imagem dum homem que assume o nosso peso e no- lo entrega a Deus.
Muitas vezes o surpreendi nesta expressão em muitos momentos e situações.
Tenho até impressão que sendo homem de multidões, não a via, assumia cada um diante daquela mol humana aparentemente impessoal.
Lembro Wojtila desde a Varanda Central, ele que falava 12 línguas, e que pediu desculpa pelas falhas da sua fala em italiano, o homem que veio do frio, que trouxe ventos de Leste, que abateu o maior muro do século, que se fez missionário pelo mundo inteiro, que trouxe ao mundo ocidental um recado de rigor, de justiça e de espiritualidade. Que teve atitudes duras com alguns que, segundo ele, perturbavam o rebanho.
Um pastor, um lider, um homem de espiritualidade. Um Beato, segundo Ratzinger, um Santo, segundo o Papa Francisco.