Pelo padre Teodoro Medeiros
Quem é velho, que lugar tem no mundo? Esta é uma pergunta que trai a nossa busca de uma verdade universal, é certo, e também é certo que seria mais moderno esgrimi-la em termos mais individualistas: mas também se executavam antes apenas os criminosos, enquanto agora se luta para que isso seja privilégio de cada um. Até lhe chamamos liberdade individual, mesmo quando o indivíduo já não pode decidir.
Na vastidão a que chamamos cinema, encontram-se inúmeros exemplos de envelhecimento, em geral remetidos para segundo plano e desprovidos de grande significado. São olhares que se concentram sobre a juventude e a força: os velhos estão lá como acessório e servem, quando muito, para inspirar alguma ação que assegure a vitória.
Um outro caso ainda, é o dos heróis veteranos: já ultrapassaram o seu período áureo, mas têm ainda energia suficiente para, com muito esforço, chegar lá. Também aqui se resvala para uma vitória que contradiz a nossa premissa, uma vez que ser-se velho verifica-se precisamente no deixar de poder o que se realizou no passado. E não há nisso nada de épico.
Já o romano Cícero no sei tratado “De Senectute” refletia o mesmo movimento compensatório: os anciãos esquecem muitas coisas, mas não as que lhes interessam deveras, como quem lhes deve dinheiro e quem os ofendeu. Alguém pensa que Homero, Pitágoras, Platão, Zenão ou Diógenes deixaram de estudar porque a idade era avançada?
De modo que os filmes sobre a deterioração grave da saúde são um subgénero da figura do anti-herói: isto, claro, quando não se vira o bico ao prego e se operam milagres de superação. Mas é só no primeiro caso que se mergulha num mar desconhecido e feio, não alheio a lugares comuns, é certo, mas também com enorme potencial de originalidade.
Estas considerações vêm a propósito do magnífico “O Pai”, filme que recebeu dois Óscares (melhor ator e melhor argumento adaptado), no que constituiu uma autêntica chuva de prémios e nomeações para Anthony Hopkins. Quando chegamos a este filme, é difícil não estar distraído com esse elemento, a anunciada presença de um gigante, mas, felizmente, essa presença faz parte de um conjunto maior.
O elemento mais surpreendente é talvez o que tem sido menos falado: como a estrutura do filme é um espelho de um processo degenerativo, uma biblioteca de memórias traídas e confusas, um arquivo traiçoeiro e inútil. O estratagema é simples
mas envolvente: a ação desenvolve-se com incongruências de factos, personagens e lugares mas sem perder a sua unidade.
Por um lado, é como se tratasse de um thriller policial, exigindo ao cinéfilo atenção a todos os detalhes, mas essa impressão depressa desvanece para dar lugar à serena realização de que não existe solução única para este novelo. Trata-se de colocar-nos no próprio centro de perceção do protagonista, fazermos a experiência da demência que se torna nossa.
“O Pai” é uma adaptação de uma peça teatral escrita pelo próprio realizador Florian Zeller há alguns anos. Trata-se da sua primeira longa metragem como realizador e é um esforço muito encorajador. Até porque a mesma peça já fora adaptada ao cinema em 2015, no filme “A Viagem de Meu Pai”, uma comédia. A sua escolha de explorar aqui o lado mais dramático produziu esta obra prima, um dos grandes filmes de 2020.