Pelo padre José Júlio Rocha
Camões cantava Portugal como a “Ocidental praia lusitana”. Pessoa, no primeiro poema de “Mensagem”, diz que “A Europa jaz, posta nos cotovelos […]. Fita, com olhar ‘sfíngico e fatal, o Ocidente, futuro do passado. O rosto com que fita é Portugal.”
E assim, com o exemplo dos dois expoentes máximos do verso lusitano, se vai cantando o nosso belo Portugal, solarengo e brando, esse país de contrastes que nós amamos e, ao mesmo tempo, dele falamos todo o mal possível, num queixume, como se deixássemos cair os braços, conformados com a fatalidade de Portugal ser isto e não passar disto. É um país intrinsecamente corrupto, dizem uns; é uma pátria desleixadamente pobre, que não gosta de trabalhar, queixam-se outros; é quase sempre o último da União Europeia, vemos todos nós.
Uma das coisas em que Portugal é mesmo bom, apesar de ser apenas uma faixa de terra com 10 milhões de almas, é o futebol: temos o que já foi bastas vezes o melhor jogador do mundo, a nossa joia da coroa, o nosso Ronaldo, para além de outras estrelas da bola, que orgulham o desporto favorito dos portugueses. Temos dos melhores treinadores do mundo. Ainda no fim do mês passado, há poucos dias, Leonardo Jardim venceu a Liga dos Campeões Asiáticos e Abel Ferreira, a Copa Libertadores. Treinadores a fazer história por essa Europa e esse mundo fora não nos faltam, graças a Deus. Temos árbitros internacionalmente reconhecidos pelos seus méritos. Já de dirigentes não quero falar, porque estão nos antípodas da classe dos jogadores e treinadores e entram no rol daqueles que põem o País na cauda da Europa.
O futebol tem muitas coisas más, mas poucas, muito poucas tão ridículas como aquela que se passou no sábado passado, dia 27 de novembro. Já se falava havia dias do possível adiamento do jogo B-SAD/Benfica, devido ao exagerado número de infetados com COVID-19 nas hostes azuis. É preciso dizer, antes de mais, que esta B-SAD é mais um daqueles casos que ninguém entende e que só existe em Portugal: o verdadeiro Belenenses vegeta em divisões inferiores. Isto porque divergências separaram o clube da sua SAD e a SAD constituiu um novo clube que, incrivelmente, joga na liga principal, sem nome certo, sem estádio, sem adeptos, sem nada: um clube fantasma. A poucas horas do início do jogo de o jogo, a B-SAD ainda se torna mais fantasma: só tem nove jogadores e, de entre eles, há dois guarda-redes, sendo que um iria jogar como lateral, nem sei se médio ou avançado, o que, por si só, é suficiente para fazer rir e chorar, ao mesmo tempo, as pedras da calçada mais empedernida. O mais incrível de tudo, o que nem Nostradamus conseguiria inventar, é que o jogo começou mesmo! E ainda durou mais de meio tempo, quando a equipa azul decidiu que três jogadores estavam lesionados e tudo acabou num gentil 0-7.
Toda a gente concordou que aquela era uma página negra para o futebol português. Mas, como era chuva a mais, toca tudo a sacudir a água do capote. Anda ninguém tem culpa. Cá para mim, ninguém escapa ileso: todos têm culpa, pelo menos culpa moral. B-SAD, Benfica, Liga, todos os mais que quisermos juntar à lista, não podem fugir à responsabilidade de terem o dever de fazer tudo para que aquela partida não se realizasse. Umas chamadas, uns telefonemas, vamos conversar, vamos parar com isto! Não: ficaram todos de braços cruzados, à espera que a tempestade chegasse, perfeita, a pôr o Portugal desportivo no rol dos países mais ridículos do futebol.
A nossa Assembleia da República também gosta, às vezes, de nos fazer ter pena de Portugal. Uma das últimas pastas a serem discutidas antes da sua dissolução foi a da legalização da eutanásia. Sou daqueles que acham que o debate público, o mais vasto possível, ainda tem muitos passos para dar em matéria tão melindrosa, ainda tem muito para andar até que o maior número possível de portugueses saiba bem do que é que estamos a falar. Mas a Assembleia da República chamou a si o ónus da questão e não se pode dizer que não tenha trabalhado afincadamente: já lá vão quatro discussões do tema em assembleia plenária e já estamos à espera de uma quinta. Porquê? Com a pressa (que eu não entendi) de resolver a questão antes de um novo panorama político na nossa casa da democracia, os representantes do povo puseram, mais uma vez, o pé na poça: o projeto-lei da eutanásia, a ser apresentado ao Presidente da República, fazia uma confusão danada entre “doença fatal”, “doença incurável” e “doença grave”. Como é que, na textura final de um projeto-lei – que, no mínimo, se exige que seja preciso nos seus termos – se baralha tudo e tudo volta ao mesmo, é coisa que, sinceramente, me escapa. Como é que aquelas 230 cabecinhas pensadoras não conseguiram distinguir uma batata de uma cenoura, depois de quatro discussões plenárias e de um chumbo do Tribunal Constitucional, é outra coisa que me ultrapassa.
Marcelo, com a lógica de “dois mais dois são quatro”, chumbou o projeto. E logo o Carmo e a Trindade estremeceram sobre a cabeça do nosso Presidente, acusado de cinismo, de agir por motivações religiosas e pessoais, de ser sonso. Tudo isto me recorda aquele colega de turma que, chamado ao quadro para resolver uma equação, fez tudo errado. O professor corrigiu-o e ele amuou e disse ao professor, num lamento: “O senhor tem que ter sempre razão!”
O que é que a eutanásia e o futebol têm em comum? Simples: Portugal no seu melhor. E nós havemos de deixar cair os braços e conformar-nos, como sempre, desde que Afonso Henriques deu umas palmadas na mãe e começou um País que, apesar de tudo, é uma das pátrias mais seguras e pacíficas do mundo. E viva Portugal!
*Este artigo foi publicado no Diário Insular desta sexta-feira, na rubrica Rua do Palácio