Pelo padre José Júlio Rocha
O Antigo Testamento não é o Novo Testamento. E qualquer cristão que ponha no mesmo patamar estas duas metades do Livro Sagrado não está na senda justa. É claro, para os cristãos, que há um caminho gradativo na compreensão de Deus, do homem e da fé ao longo da Bíblia, que culmina com a plenitude da revelação em Jesus Cristo. É por isso que, no Antigo Testamento, existem muitas passagens que não compreendemos: existem, por exemplo a guerra e a violência, fala-se num Deus dos exércitos, num Deus só Deus de Israel, num Deus que dá a força ao seu povo contra outros povos, tudo ideias que primam pela ausência no Novo Testamento, antes pelo contrário. Em Jesus toda a guerra é um absurdo.
Particularmente delicado é o salmo 58, um salmo que se evita rezar na Liturgia das Horas e se evita cantar na missa, por ser uma oração incomodamente violenta. Começa por identificar o inimigo:
“Desde o seio materno os maus se desviaram;
desde o seu nascimento os mentirosos se perdem.
Têm um veneno como o da serpente.”
Há um inimigo do povo. E, como todos os inimigos que se prezem de o ser, este em particular só tem crimes e defeitos, como serem maus desde o nascimento, serem mentirosos perdidos com veneno de serpente. Esses inimigos que nos assaltam, que não crêem no mesmo Deus (ímpios), que ameaçam a dignidade e a vida dos nossos, merecem que se faça uma prece a Deus nos seguintes termos do salmo:
“Ó Deus, quebra-lhe os dentes na boca;
Senhor, parte suas presas de leões!
Que se dissipem, como água que corre,
que sequem como o mato que se pisa.
Como a lesma que se derrete e some,
como o aborto que nunca viu a luz do dia.
Antes que cresçam, sejam extirpados como o espinho,
sejam ceifados como o mato que o vento carrega.”
É realmente duro demais entender como um texto desses pode fazer parte da Bíblia Sagrada, perguntem ao José Saramago. O contraste com o “amor aos inimigos” de Jesus é evidente. Há uma evolução nítida nos conceitos de paz, guerra, perdão ou inimigo.
Mas hoje Israel pensa assim, como este salmo. Isolado no meio do crescente fértil, cercado pelas maiores potências bélicas e culturais da época, o povo hebreu foi sempre pequeno entre os grandes. Vítima dos egípcios no tempo entre Jacob e Moisés, vítima dos babilónios, dos gregos e dos romanos, deixou de habitar na “Terra Santa” em fins do primeiro século, passando a viver na diáspora, onde foi perseguido inúmeras vezes até ao auge de todos os horrores, o Holocausto da segunda Guerra Mundial. Foi à sombra desta hecatombe que muitos judeus regressaram à Palestina, particularmente os sionistas, radicais, para quem o regresso ao Monte Sião (Jerusalém) era definitivamente sagrado. O povo de Israel plantava-se, de novo, na “Terra Santa”, rodeada de perigos, agora vindos do mundo muçulmano. O novo Estado nasceu sob a égide da polémica: milhões de palestinianos foram sendo expulsos das suas terras e engavetados desumanamente nos enclaves da Cisjordânia e da Faixa de Gaza a quem Israel nunca concedeu o direito à autodeterminação ou à independência, antes implantava abusivamente colonatos judeus nassas terras. Com as costas bem protegidas pelo Ocidente, mormente Estados Unidos, Israel safou-se em quase todos os conflitos com os vizinhos, tendo vindo a consolidar a sua presença entre tensões e guerras regionais. O que se passou no dia 7 de outubro deste ano pode mudar tudo.
O massacre do kibutz de Kfar-Aza primou, como de costume no terrorismo islâmico, pela sordidez e desumanidade, devastando centenas de vidas inocentes, muitas crianças, ódio puro e imperdoável. Um crime de guerra. Israel, sabemo-lo, não tem pelos na língua. A resposta foi devastadora, com bombardeamentos a eito na Faixa de Gaza e o seu isolamento total. Israel sabe que matou civis, entre os quais mais de quinhentas crianças. Mais um desumano crime de guerra, acrescentado por um isolamento que pode levar, eventualmente, a levantar a questão de se estar perante o genocídio de um povo. Informo os mais radicais que a esmagadora maioria dos palestinianos, sobretudo os que vivem num campo de concentração chamado Faixa de Gaza, são pessoas inocentes, e são, evidentemente, há mais de setenta anos, as grandes vítimas deste perigoso conflito.
Como de costume na nossa era, há poucas opiniões decentemente equilibradas. Uns defendem o Estado de Israel a partir do mais duvidoso de todos os pressupostos: aquela terra pertence a Israel há mais de três mil anos e, por isso, a terra é deles e todos os que combatem este princípio são terroristas islâmicos ou seus aliados. Apliquem esse princípio a outras regiões e verão o resultado… Outros consideram o terrorismo uma resposta – quase aceitável – de um povo oprimido e o verdadeiro terrorista é o Estado de Israel.
Quanto tempo os criminosos do Hamas vão deter os reféns? Quanto tempo durará o isolamento total do povo da Faixa de Gaza? Quando e quão devastadora será a invasão de Israel àquela banda de terra pobre, sem um porto, sem um aeroporto, sem dignidade? De tudo isso dependerá o futuro daquela região milenarmente religiosa e mártir. Também o futuro da Europa e, quiçá, do mundo. A revolta do Islão espalhado por todo o mundo pode ser devastadora. O terrorismo islâmico poderá regressar com uma dimensão nova e certamente mais horrível. Não é só Israel que corre o risco de deixar de existir. É o mundo tal como o vemos agora.
Presumo que quem lê a Bíblia para aquelas bandas não passe muitas vezes os olhos para o poema do 11º capítulo de Isaías:
Então o lobo habitará com o cordeiro,
e o leopardo deitar-se-á ao lado do cabrito;
o bezerrinho e o leão comerão juntos,
e um menino os conduzirá.
Mas o mundo está a morrer. Mais um pouco.
*Este texto foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.