António Pedro Costa
Foi bom caminhar pelos Caminhos da Ilha.
Seja bendita e louvada a Sagrada Paixão e Morte e Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo; Seja para sempre louvada com Sua e nossa Mãe Maria Santíssima… ouve-se em jeito de resposta, todos em uníssono. Assim são todas as madrugadas para se iniciar uma longa e extenuante caminhada pelos caminhos de S. Miguel. Fui “correr a ilha”, como diz o nosso povo.
Durante uma semana, integrado no rancho da minha terra, o maior rancho da ilha, lá fui eu, há poucos anos atrás, entoando avé-marias, nos povoados ou nos descampados, sempre rezando em louvor de Nossa Senhora, conjuntamente com os outros irmãos, enquanto das janelas e das portas das moradias surgiam pedidos clementes, implorando a ajuda divina para situações muito diversas e difíceis da vida. O “procurador das almas” acrescentava no seu terço as rogadas petições para serem cumpridas por todos os romeiros.
É uma experiência que, para quem participa, nunca mais a esquece na vida e nunca se perde o título de “irmão”, porque romeiro por uma semana, romeiro para sempre. Por montes e vales, atravessamos paisagens de sonho, num ambiente de fraternidade e de solidariedade difícil de explicar, onde não há patrão ou empregado, doutor ou pedreiro, pois todos se sentem irmanados no mesmo espírito e sintonizados com a intensa espiritualidade vivenciada por cada um dos peregrinos, seja mestre, contra-mestre, guia ou simplesmente irmão.
Indiferente à paisagem dos verdes prados, vamos descendo ou subindo até arribas íngremes, por vezes perigosas, enquanto as sorridentes vacas açorianas pastam entre a névoa e os lavradores madrugadores carregam vasilhas de leite nos cavalos ou em carrinhas, em direção ao posto de recolha de leite, lembrando que esta é uma terra que está confrontada com a baixa do preço e o aumento dos fatores de produção, para mal dos que labutam com elas e da própria economia dos Açores.
Às quatro da manhã, custa sair da cama e ir em direção à Igreja, onde todos se juntam para se continuar a caminhada, ainda com a lua cheia a alumiar o atalho ou, no negrume da noite, com as lanternas iluminando os que vão à frente, mostrando a direção a seguir. Na escuridão da madrugada, vão surgindo umas luzes de janelas entreabertas como o céu estrelado, a pedir mais um pai-nosso e uma avé-maria, para se cumprir a da reza nos descampados da ilha.
Há sempre algum dos irmãos que fica com bolhas nos pés e tem dificuldade a andar, mas também há sempre outro que se encarrega da ajuda para que ninguém fique para trás e lá pega num alfinete e linha e fura as bolhas para esvaziar o líquido e ela poder secar, num alívio agradecido. Cada romeiro lá sabe no seu íntimo a razão que o leva a uma romaria, cumprindo a promessa de agradecimento por situações complicadas que ele ou os seus passaram ou apenas pedir a Deus por um emprego, já que ele deixou de receber o subsídio e não há maneira de surgir uma oportunidade para dar à família o sustento de cada dia.
Há aqueles que ao chegarem à Ermida da Senhora da Nazaré, no Nordeste, sobem a escadaria de joelhos e indo até ao altar do pequeno templo, entregam uma coroa do Espírito Santo, onde recebem uma fitinha que colocam de forma prazenteira no xaile, em sinal de cumprimento da promessa. Há também os que não vão agradecer a Deus, nem pedir, por intermédio de Santa Maria, por uma graça para si, mas para algum vizinho ou para um amigo em situações de apuro. Cada um sabe o motivo porque caminha nestes oito dias e à noite precisa de lavar os pés no tradicional alguidar, com água quase a ferver com sal e esperar pela ceia, que é sempre um momento de partilha generosa, que tanto pode ser farta, como modesta, mas cheia de valor aos olhos de Deus.
Anos há em que o tempo é um factor que complica a caminhada, sejam acompanhados de chuva miudinha e persistente ou seja a causa de aturar a inclemência do sol, mas o caminho vai no sentido dos ponteiros do relógio e tem de ser percorrido, independentemente das condições atmosféricas. Sentir os pés regados pela água da chuvada não atrasa o passo, nem o corpo encharcado impede a caminhada, nem é preocupação para um eventual resfriado ou uma constipação.
O bordão é uma réplica da cana, colocado nas mãos de Jesus aquando do seu padecimento. O lenço simboliza a coroa de espinhos e é colocado por cima do xaile. A saca é onde se transporta a comida, que deve ser sempre levada às costas, significando a dolorosa cruz transportada pelas ruas de Jerusalém, até ao Calvário.
Na Vila das Capelas, começa a cheirar à casa de onde se partiu a semana anterior, que parece uma eternidade, e os bordões levantam-se em sinal de alegria, porque a torre sineira da Igreja-mãe assoma no casario, ao longe, irrompendo da paisagem. A saudade do fim da romaria começa a invadir cada um e a divisão dos terços é tarefa que não pode ser esquecida, pois é muito importante que nenhuma avê-maria pedida fique para trás.
Entretanto, como sempre e nas restantes freguesias que faltam percorrer, às janelas continuam a assomar mulheres com a mesma pergunta na ponta da língua: irmão, quantos vão no rancho? Cento e trinta e dois, respondia o último, o procurador das almas, de terço nas mãos para não se enganar nas contas, ou aquela velhinha de rosto lacrimejado que pedia: Irmão, uma avé-maria pelas alminhas do purgatório e que Nosso Senhor vos acompanhe. A resposta é sempre a mesma: Seja louvado nosso Senhor Jesus Cristo e sua Mãe Maria Santíssima e uma santa Páscoa para a irmã e para os seus.
O regresso é um momento incontável, quando as ruas se enchem aos magotes para saudar os que partiram e cumpriram o que haviam prometido.