Pelo Padre José Júlio Rocha
O scirocco (leia-se, em português “chiroco”) é um vento suão que de vez em quando atravessa a Itália, sobretudo as regiões do sul, Roma incluída. O tempo vira insuportável, sobretudo nos meses de verão. Traz o calor e finíssimas partículas de areia do Sahara, antes de atravessar o Mediterrâneo que, aquecido pelo vento, carrega a atmosfera de uma humidade viscosa. É esta mistela que de vez em quando apanhamos pela cara fora: temperaturas de 35 graus ou mais, humidade a 90%, o ar sujo de areia amarela, pouco respirável. A vida é difícil em tempos de scirocco.
Fazia esse tempo naquele dia de Maio de 1994. Era sábado. Levantei-me tarde e reparei que já não tinha muito tempo: estava combinado para esse dia um jogo de futebol de onze, inserido num torneio de colégios de padres a residir em Roma. A minha equipa era uma turma de mercenários, de vários colégios e vários países não muito representados em Roma. Íamos jogar contra os padres do México.
Nem tive tempo de fazer a barba. Foi vestir o que tinha à mão, meter o equipamento numa mochila (eu era guarda-redes) e apanhar os meios de transporte que me levassem aos arredores de Roma. Perto da estação Termini apanhei o que os romanos chamavam “trenino”, que não passava de uma velha composição do Metro de Roma dos anos 50, ainda com bancos de madeira, velho a cair aos bocados, todo pintado a “graffiti”, que me transportou, através da imperial Via Casilina, para o leste de Roma, onde pontuam alguns dos bairros mais problemáticos de Roma. Não sei se é importante para aqui, mas acabámos por perder por 2-3, e eu levei um frango monumental que acabou com as esperanças da equipa.
Com amargura no peito regressei a casa, apanhando o “trenino” de volta. Estava sozinho na carruagem e sentei-me ao fundo. Na paragem seguinte entrou um grupo de uns dez rapazes, quase todos “teenagers” vestidos de forma agressiva, cabeças rapadas, poses provocadoras. Olharam para mim desconfiados, mantendo-se de pé na outra ponta da carruagem. Ouvi um deles dizer: “marroquino de m*rda”. Era para mim. Era eu que tinha cara de magrebino, rosto suado, cabelos desalinhados, tez trigueira, barba por fazer. Um deles, que julguei ser o mais velho, o macho alfa do grupo, sempre a olhar para mim com ar de ameaça. Comecei a sentir aquele medo que revolve os intestinos e evitei olhares. Os rapazes aumentavam os decibéis das vozes e o tom das conversas versava sobre os migrantes que vinham para Itália roubar o trabalho aos italianos, espalhar a desordem, sujar as cidades, como raças inferiores que eram.
Um quarto de hora depois os rapazes saíram para a plataforma de uma estação. De dentro do comboio tive a coragem de os olhar de frente. Ameaçaram-me, do lado de fora: “Vai para a tua terra, bastardo!”. “Porco muçulmano!” Um deles fez a saudação nazi com os olhos raiados de raiva para mim.
Recordo uma frase grafitada num muro daquela estação, que nunca mais me sai da memória: “Todos os dias vês o sol levantar-se, chegar ao ápice e pôr-se. No dia em que não vires o sol, das duas uma: ou o sol morreu ou tu és o sol”. Por baixo, uma suástica enfeitava a frase. Tive medo a sério. Um medo frio que me infetou a alma durante dias, medo do mundo, do que seria eu num amanhã mais violento, medo do medo, medo kafkiano de ser perseguido, injuriado, julgado sem saber porquê nem de quê. Um medo com raiva, Deus me perdoe.
Não foi a única vez que, em Roma, fui confundido ou tratado como originário do lado sul do Mediterrâneo.
De 94 para cá, esses grupos, ainda marginais nessa altura, cresceram, desenvolveram-se, as suas ideias tornaram-se transversais à sociedade, disseminaram-se os radicalismos xenófobos.
Tenho uma certeza quase tão grande como a minha fé: nunca na minha vida suportarei a existência legal de movimentos, grupos ou partidos que permitam, tolerem ou promovam atitudes como aquelas de que fui vítima. “Pode o mar subir à serra, pode o bom ser o ruim”, como canta uma velha quadra, mas nunca deixarei, para o resto dos meus dias, de sentir a suave repugnância por atitudes como aquelas, e um prolongado desgosto por quem as pratica ou promove, em nome seja de quem for.
*Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio