Pelo padre José Júlio Rocha
Esta é a história de Ângelo, um homem simples. As histórias dos homens simples têm sempre algo de comovente ou, pelo menos, de simpático. Este Ângelo de que vos falo é uma personagem fictícia, secundária, no famoso romance “Olhai os Lírios do Campo”, do brasileiro Erico Veríssimo, que conta a saga de Eugénio, ou Genoca, que se tornou médico na São Paulo dos anos 30 do século passado. Ângelo é o pai de Eugénio. O quarto capítulo do livro é comovente e eu podia fazer “copy-paste” e deixar plasmado o capítulo aqui tal como o autor o escreveu. Permitam que o resuma com palavras minhas, certamente menos brilhantes do que as de Erico.
Ângelo é um alfaiate pobre. Mas o sonho do filho, Eugénio, é tornar-se médico, uma coisa que, nos anos 30, era quase impossível. Um alfaiate mal tem dinheiro para dar de comer aos filhos. E Ângelo tinha dois: o Eugénio, que queria ser médico, e o Ernesto, que não queria ser nada.
Como colocar o filho na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, um curso altamente elitista para onde só iam os filhos dos médicos, dos políticos, dos advogados, dos que nadavam em dinheiro? Trabalhando dia e noite, poupando o mais possível, sacrificando-se até à exaustão. Foi o que Ângelo decidiu fazer. Doravante era para Eugénio que a família vivia. E os sacrifícios começaram. Noite dentro, curvado sobre a mesa à luz escura da lamparina, tossindo a sua asma, respirando mal, comendo mal, dormindo mal, Ângelo entregou-se totalmente ao sonho do filho.
Eugénio entrou para a faculdade. Tinha roupas dignas, que o pai talhara. Inteligente e empenhado, Eugénio progrediu, mas sempre com um espinho cravado na carne: tinha vergonha das suas origens humildes. Conseguiu passar entre os pingos da chuva e passou por ser filho de gente importante. Deslumbrava-se com o estilo de vida dos colegas como, por exemplo, do Alcibíades, filho do Secretário do Interior, com carros, cavalos de corrida, quarenta gravatas de seda…
Um dia, no intervalo, vai Eugénio com Alcibíades e Acélio Castanho, o mais nobre e rico aluno da faculdade. Rua dos Andradas, os três pelo passeio abaixo a falar de Platão e Aristóteles. Então Eugénio viu um vulto familiar surgir de uma esquina e sentiu um desfalecimento. Um homem magro, mal vestido, poeirento, encurvado, com um pacote no braço. Era o pai. Em pânico, Eugénio olhou para o lado e viu uma loja de brinquedos. Podia inventar uma desculpa, lançar-se pela loja dentro e deixar que o pai passasse sem o ver. Hesitou. Quando voltou a olhar já era tarde demais, já o pai o vira, já abria um largo sorriso para o filho por quem sentia demasiado orgulho. Desviou-se para o lado, tirou o chapéu e disse: “Boa tarde, meu filho!” Eugénio seguiu o seu caminho, olhando sempre em frente, sem ligar ao pai. Os outros não deram por nada. Safou-se!
Mas não se safou da própria consciência que, dois minutos depois do alívio, lhe começou a martelar a cabeça. Acabara de fazer algo desumano, ignóbil, quase criminoso. Porque se envergonhava de seu pai? Em que é que os pais dos outros, a quem nada custava pôr os filhos a estudar, eram melhores do que o seu, que dedicara a vida a ele?
Chegou a casa dos pais pela hora do jantar. Reparou que a mãe tinha os olhos inchados e vermelhos. Não conseguia olhar o pai. A refeição foi em silêncio, entrecortado por palavras práticas, abstratas. Enquanto Ângelo punha gotas de remédio num copo de água, Eugénio olhou-lhe o rosto cansado, barba azulada de dois ou três dias, que não havia dinheiro para a fazer todos os dias… acendeu um cigarro e foi então que aconteceu o inevitável. Os olhos do pai e os olhos do filho encontraram-se. Ângelo sorriu para o filho. Não um sorriso de quem perdoa mas um sorriso humilde, servil e constrangido de quem pede perdão. Perdão por não ter dinheiro, por ser alfaiate, por andar mal vestido, por não ser um pai como os pais dos outros colegas. Pela primeira vez o pai dirigiu-se ao filho: “Genoca, tu não estás precisando de mais uma roupa?” “Não, pai, muito obrigado.” Como aquilo era insuportável! Lembrou-se de um manso cachorrinho que tivera em criança, pobre vira-lata sarnento, que vinha lamber as mãos dos que lhe davam pontapés. Eugénio caminhou para a porta dos fundos e saiu de casa. Na rua, ao luar, lágrimas quentes correram-lhe. Como queria abraçar o pai, beijar-lhe os cabelos, acariciar-lhe a face rugada, amá-lo com ternura! Porque não conseguia?
Esta é a história de um homem simples, semelhante a outras histórias de muitos homens simples que habitaram as nossas vidas. Pessoas inúteis, que não deixam atrás de si história, leis, monumentos, façanhas nem coragem, destinadas a perder, que não mostram dentes nem músculos e que, mais tarde ou mais cedo, acabam por se render às fatalidades do destino. Frágeis como a cinza, sem medalhas nem troféus, resignados a dizer sempre sim a quem lhes passa ao lado, ou por cima, mas que amam por dia mais do que muitos num ano.
Esta é a história de uma injustiça, daquelas que pululam nas famílias de ontem e de hoje, onde se ensina o alfabeto da humildade, onde se aprende o abecedário da ingratidão.
Todos nós somos injustos com alguém.