Por Carmo Rodeia
Vivemos ainda o tempo de Natal já com um pé no ano novo. Ainda assim com assuntos velhos por resolver. Um deles é a falta de capacidade para o diálogo que é a única forma de obtermos a verdade e a justiça.
Há quatro dias as notícias anunciavam que a produtora brasileira “Porta dos Fundos” tinha sido alvo de um ataque com cocktails Molotov, na véspera de Natal.
Em causa esteve uma reação de indignação contra a equipa que produziu e realizou um filme onde Jesus é apresentado como homossexual.
Já vi o filme na rede Netflix e acheio-o de muito mau gosto, deplorável até, não por ridicularizar a figura de Jesus (coisa que poderia ter sido evitada) mas porque o guião é mesmo muito mau. Já no seu tempo Jesus era acusado de tudo e de mais alguma coisa. Era amigo dos publicanos, foi acusado de se embriagar, de ser amigo de mulheres de má vida. Nunca foi acusado de homossexualidade porque o tema na altura não era tema, como é agora e sobretudo no momento que o Brasil vive atualmente, com a radicalização do discurso e a perseguição às minorias. Mas as coisas são o que são e devem ser devidamente medidas e contextualizadas.
A “obra” ( tenho dúvidas que seja de arte só pelo facto de ser um filme!) até nem é simpática para a comunidade homossexual porque as piadas mais do que non sense são grosseiras e até menosprezam a inteligência ao apresentarem diálogos fúteis e até grosseiros. Por isso, estamos diante de um filme de série B, que é uma produção oportunista, num determinado contexto, que se aproveita de um tempo especifico para tentar passar uma mensagem que não é conseguida.
A obra foi muito criticada pela ala mais conservadora da sociedade brasileira. E nas redes sociais até se insinuou que o ataque tinha sido forjado pela própria equipa de produção de forma a chamar a atenção para um filme que tinha passado despercebido e assim seria publicitado. Confesso que se não tivessem sido as notícias sobre o ataque não teria visto o filme. E como eu, muita gente. Mais tarde o atentado contra a sede da produtora foi reivindicado por um grupo integralista que defende um estado brasileiro baseado na doutrina cristã. O que ainda torna toda esta polémica mais inusitada.
Tudo isto é o fracasso do diálogo. E o diálogo é a única forma de obtermos a verdade e a justiça. O medo e a vingança não são sequer hipóteses.
Infelizmente hoje o diálogo foi substituído pelos monólogos, longos e duros. Não se pode falar em diálogo porque o diálogo pressupõe capacidade de escutar para além da capacidade de dizer. E, na verdade, ninguém hoje quer ouvir. O que é comum, sobretudo entre estados e entre grupos organizados, é uma afirmação de força, de superioridade, dizendo sempre que se quer de uma determinada maneira e se não for assim ripostaremos desta ou daquela maneira. Verdadeiramente não queremos ouvir a outra parte queremos impor apenas a nossa vontade e atrevemo-nos a chamar a isso diálogo.
Veja-se o que acontece por esse mundo fora nas relações entre os EUA e a China; ou entre os EUA e a Coreia; ou entre o Brasil e o resto do mundo… A paz, que só se constrói com diálogo, está ameaçada. É o maior anseio da humanidade mas também aquele que todos os dias fica mais comprometido.
Tem razão o Papa Francisco quando diz que é preciso uma conversão ecológica, que é mais, muito mais, do que uma questão ambiental.
O Natal recordou-nos, uma vez mais, que Deus continua a amar-nos, mesmo aos piores de entre nós. Este amor não depende de nós mas Dele. É a nossa sorte, porventura. Se nos dizemos cristãos porque não somos capazes de amar o próximo como Jesus nos ama, mesmo quando os outros têm ideias erradas, mesmo quando fazem trapalhadas.
A conversão do coração, de cada um, tem de ser o primeiro desejo do Ano Novo.
Bom ano de 2020.