Pelo padre José Júlio Rocha
Março de 2013 foi trágico para o Faial da Terra, freguesia que habita um vale fundo nos confins da ilha de São Miguel. Uma derrocada de lama e pedregulhos, provocada pela chuva intensa, atingiu três casas e matou três pessoas. O que me faz recordar esta história é um facto verídico e arrepiante: quando os bombeiros e Proteção Civil entraram no quarto de uma casa em ruínas, encontraram um homem morto pela avalanche, abraçado à sua filha de quatro anos. A menina estava viva. Ao aperceber-se de que a avalanche estava a derrubar a casa, no último gesto da sua vida, o pai atirara-se para cima da filha, num ato provavelmente instintivo, para a proteger da morte. Morreu para salvar a menina.
Durante muitos anos, naquela terra, o pároco não precisará de se esforçar muito para explicar aos fiéis o sentido da Sexta-feira Santa. Ali encontrará o exemplo em carne viva do que é dar a vida para salvar. E este é o sentido último da Cruz de Cristo, que a Igreja venera neste dia solene e silencioso.
No passado domingo, de Ramos, cantámos um dos salmos mais belos da Bíblia, o salmo 22, que começa: “Meu Deus, Meu Deus, porque Me abandonaste?”, salmo que foi divinamente musicado pelo saudoso padre Piques. São estas as últimas palavras de Jesus na cruz, segundo o Evangelho de São Marcos.
Estas últimas palavras de Jesus também são nossas. A partir do momento em que acreditamos num Deus pessoal, que, enquanto é todo-poderoso, também é Amor, a existência do mal e do sofrimento torna-se na maior questão existencial da nossa fé. Afinal, se Deus é bom e todo-poderoso, porque é que permite o mal e o sofrimento, as crianças que morrem de fome e de doença, as mães que perdem os filhos, uma hecatombe como o Holocausto, um terremoto que mata, o mal que, avassaladoramente, se vai entranhando na história da humanidade? Onde está Deus no meio desta pandemia? Onde está Deus quando rezamos e pedimos ajuda, quando a Ele nos socorremos e nada encontramos senão o silêncio incómodo da Sua ausência?
A frase do salmo 22 pode fazer parte da existência de qualquer crente. Quantas vezes, na nossa solidão e no âmago das nossas dores, perante a angústia da morte e da sofrimento inocente, e diante do grande silêncio do Eterno, não nos aflorou ao coração e aos lábios a sensação tremenda do abandono de Deus?
E quantas vezes olhamos para os não crentes, aqueles que não põem a questão, porque simplesmente Deus, para eles, não existe, e para quem o mundo corre como corre e não há nenhuma pergunta a fazer, porque o mundo é como é e pronto?
Uma das estrofes do salmo 22 reza assim:
Todos os que me veem escarnecem de mim,
distendem os lábios e meneiam a cabeça:
«Confiou no Senhor, Ele que o livre,
Ele que o salve, se é seu amigo».
E nós, perante a indiferença ou o sorriso dos que não vivem a nossa dor, sentimos o peso daquela solidão silenciosa e pesada, como quem diz: “os outros, que não puseram a sua esperança no Senhor, continuam a sua vida, contentes e felizes, e eu, que depositei a minha confiança em Deus, vivo a experiência do desamparo”. É então que nos apetece desistir de Deus, deixar de rezar e até deixar de crer. Não vale a pena uma vida de sacrifício e oração quando a resposta não chega.
Sabem qual foi o exemplo mais claro de toda esta experiência? O do próprio Jesus. Deu toda a Sua vida ao Pai. Tudo fez em Seu nome. Amou, curou, rezou, pregou o amor, nada na Sua vida foi feito que não fosse inteiramente para implantar o Reino de Seu Pai na Terra. E o resultado foi um beijo que O traiu, a negação de Pedro e a fuga dos outros apóstolos, o julgamento em que o povo berrava: “crucifica-O”, os açoites, o escárnio da coroa de espinhos e, por fim, a humilhante e esmagadora morte numa cruz, de braços abertos diante de quem passava e dizia: “Confiou no Senhor, Ele que o livre, Ele que o salve, se é seu amigo.”
É por isso que o grito de Jesus “Meu Deus, Meu Deus, porque Me abandonaste?” é uma das frases mais tremendas da Bíblia. Um pensador dizia que o cristianismo é a única religião onde o próprio Deu se torna ateu. Bem entendida, esta ideia exprime a profunda essência da nossa fé: um Deus que se separa de Si mesmo, que Se abandona, que Se deixa morrer, desce ao inferno da própria solidão de Deus. Este é o significado daquilo a que chamamos Salvação: Deus abandonou-Se para não nos abandonar. A teologia deste mistério tem um nome: Amor absoluto e total. Doação de Si mesmo até ao fim, à morte. Se Deus desceu à morte, então ninguém está só, abandonado, porque, em Jesus, Deus está lá.
Não me esqueço daquele homem de 47 anos que, no Faial da Terra, morreu para que a filha vivesse. É um caso extremo de amor. Só assim entendemos este tempo de silêncio e mistério: nunca estaremos sós.
*Este texto foi publicado na edição desta sexta-feira no Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio