Pelo Pe. Teodoro Medeiros
O título não remete para dados estatísticos públicos ou ideologia económica: o défice nacional referido é o de um filão português de cinema com ideias, original, estimulante e determinado, limpo de tiques e das estrelas do regime. E popular.
O parágrafo anterior não acusa o filão de não existir, antes considera que lhe falta ser popular. Não é sequer necessário atracar em Manoel de Oliveira; este artigo é exatamente sobre quem constitui essa corrente e está no ativo (ironicamente recebendo também os seus prémios além portas).
De Teresa Villaverde já todos ouviram falar: cinema não comercial, cheio de cenas fortes e que se coloca perante a tradição como o tigre diante da carne crua. É uma cineasta que parece gostar de filmar gente nova e a forma natural que têm de se meter em sarilhos. Como é óbvio, os valores de produção têm a virtude de parecerem quase inexistentes.
O que nos traz a “Colo”, o filme premiado em Berlim e que está em exibição nas salas portuguesas neste momento. É uma experiência de despojamento fílmico, quase de pobreza; e uma aproximação minimalista ao trabalho dos atores (naturalista?), num filme que a realizadora também escreveu.
Para os impacientes, o ritmo será demasiado lento e não recompensará o tempo investido. Mas é pena, já que se acertam as agulhas cedo e se rejeitam os lugares comuns (quando foi a última vez que vimos um filme começar com uma separação?); é precisamente o romper com esquemas de pacotilha o que lhe dá fôlego.
“Colo” consegue criar um ambiente de fantasia da forma mais natural possível: a fuga de casa, o divagar das duas adolescentes pela Lisboa noturna do arrabalde; a sequência vê-se como o mapeamento do ADN do que é ser adolescente (a capacidade de divagar sem rumo). Os diálogos desconcertam: -“Não sei nada disso: se calhar devias falar com outra pessoa…”
O ambiente é o da crise portuguesa, nos seus anos mais pesados: o marido-pai arrasta-se pela casa e pela existência como um pré-morto; a esposa-mãe resiste como motor suporte da conjuntura até estalar e desistir; a filha oscila entre ondas de choque, horários de escola e o distúrbio que também a habita.
Uma palavra para a protagonista, (representada pela jovem atriz micaelense Alice Borges Albergaria): a singularidade do seu rosto e da sua indumentária complementam bem a opressão em que se tornou a nossa sociedade. São pessoas reclusas que olham para pássaros engaiolados e se queixam que a vida é só trabalho (escola) e comer.
Uma curiosidade: numa cena dentro de um bar com música ao vivo, é nos dado o privilégio de ouvir bem os personagens, uma vez que a música é mantida em silêncio. Quantas vezes não sofremos com o ruído das cenas desse género? A solução era bem simples, afinal.
O cinema tem a virtude de que pode dar a ver o que não estamos dispostos a lembrar; o facto de que muitos lutam sem sucesso, conhecem metamorfoses kafkianas e acabam mal ou perto disso. Esta dimensão comunal, quase social (no sentido de efeito positivo de regeneração) é tantas vezes esquecida em nome do entretenimento.
Tal como Miguel Gomes no seu “As Mil e Uma Noites”, Villaverde retrata os recentes anos maus do nosso país. Mas onde aquele usava a sátira e a caricatura (especialmente no primeiro volume), a realizadora prefere criar um drama familiar intenso filmado com a leveza de quem sabe o que é que o cinema pode fazer.
O público prefere as xaropadas românticas ou as imitações dos gangsters americanos, tantas vezes carregados de vocabulário hardcore e isentos do mínimo traço de algo a que se possa chamar de marca autoral. É pena porque, querendo-se, há mais mundo do que isso.
Os desastres são boa inspiração para os grandes cineastas: o movimento neo-realista italiano do pós guerra é justamente reconhecido como um período ímpar na história do cinema.
Entretanto, impossível é assistir aos filmes de Gomes e de Villaverde e não se tornar mineiro.