Pelo padre José Júlio Rocha
A primeira ideia que eu tenho de uma tourada data dos inícios dos anos setenta, quando o famosíssimo “Noventa” do José Parreira correu, já velho, na Fonte do Bastardo. Estávamos no palanque da casa da tia Lurdes, onde costumávamos ver as touradas da freguesia, e o “Noventa”, no meio de gritos e mulheres a fugir, pôs a cabeça sobre o palanque, já velho e cansado, e meu irmão inclinou-se e tocou no focinho do animal. Minha mãe quase teve um enfarte.
Em poucos anos eu percebia que a Fonte do Bastardo estava dividida entre os “ganaderos” Gaspar Baldaya e José Albino, com bastante tendência a favor do primeiro. A tourada de fama da quinta-feira era do Gaspar, a da quarta, do José Albino, e a freguesia dividia-se tenazmente, discussões e copos, por vezes pancadaria e brigas pela noite fora, quando o quinto toiro já tinha feito mais estragos do que os outros quatro.
Para quem não é de cá ou não percebe muito de touradas à corda, o quinto toiro é o mais bravo de todos: põe mais gente caída nas valetas ou nos cantos das tascas do que todos os outros. O quinto toiro é o convívio, as cervejas, o vinho, as aguardentes e sangrias que se bebem nas tascas ou nas casas à volta do arraial por onde passa a tourada. A Terceira deve ser um dos poucos lugares do mundo onde tu, acompanhado de amigos, entras em casa de um desconhecido e, sem pedir licença, lhe abres o frigorífico e tiras uma cerveja, porque “amigo do meu amigo meu amigo é”. Este é o quinto toiro que, tarde e noite dentro, vai fazendo rores de vítimas.
Teria eu uns oito ou nove anos quando a freguesia se preparou para uma tourada daquelas de mandar peso. O Gaspar trazia bons toiros. Tudo estava preparado para a grande festa mas, convenhamos, as espectativas ficaram um pouco goradas, a tourada ficou abaixo do nível esperado por nós, os “gaspares”, e a tensão começou a apoderar-se dos mais aficionados. Ainda salvámos o terceiro toiro, mas o último, o toiro puro, aquele de quem se esperava espetáculo, gorou as esperanças. Para nós, o Gaspar era sagrado. Mais do que desiludidos, os “gaspares” tentavam explicações para o que sucedera, como, por exemplo, o asfalto que era novo e os toiros escorregavam, o calor que fazia, etc.
Até que aconteceu a chispa que incendiou o rastilho: um rapaz, um pouco mais velho do que eu, “albino” ferrenho, desceu, correndo, o arraial, a arrastar atrás de si meia dúzia de latas pelo chão, amarradas por atilhos. Era a humilhação. A rapaziada afeta ao Gaspar não suportou. Lançámo-nos numa corrida atrás do rapaz e dos outros “albinos” e a coisa terminou à pedrada atrás da escola de baixo.
O toiro de que mais gostei foi o “Cem” do Gaspar Baldaya. Sei que quem percebe de toiros deve estar a rir-se de mim, que o “Cem” era grande mas não grande coisa, era lento e pesado, mas foi uma questão de amor à primeira vista, gostei do animal e pronto. Até sonhei numa noite que lhe abraçava o pescoço e lhe acariciava aquela cabeça descomunal e ele, amigo, deixava.
Vi o “Cem” correr na praça desmontável da Praia da Vitória, gigante e lento, quase da altura do cavalo. Vi-o a desbaratar os forcados, porque contra uma cabeça daquelas nada se pode. No ano seguinte, o “Cem” correu na Fonte do Bastardo. Parecia um elefante em forma de toiro. Ele subia o arraial a passo lento e sem grande esforço, puxando os dez pastores que, desesperados o tentavam travar, ele sempre a subir e os pastores a serem arrastados pela força espantosa do animal. Mesmo à minha frente, um capinha fez-lhe uma faena e, como o toiro era lento, tentou tocar-lhe nos cornos. Correu-lhe mal: o toiro deu-lhe um toque nas ilhargas e o homem voou pelo ar, arrastou pelo chão até cair numa valeta, deitado contra um muro de tijolos de cimento. O toiro, com aquela cabeça medonha, arremete contra o homem. Os homens põem as mãos à cabeça, as mulheres gritam a todos os pulmões, o homem está morto… só que a cabeça do toiro era grande demais e o que aconteceu foi o seu focinho arrastar no chão e os cornos enfiarem-se no muro sem que tocasse no homem lá deitado. A brutalidade do impacto foi tal que a cabeça do toiro levantou no ar três fiadas de tijolos do muro. Foi um falatório! Ninguém se aproximava do “Cem” como dos outros toiros: o tamanho metia medo.
Com a chegada da juventude comecei, como qualquer terceirense que se preze, a gostar da adrenalina das touradas. Estar no caminho em vez de no palanque foi uma conquista que só consegui de meu pai aos 16 anos. É uma espécie de rito de iniciação: só se é homem quando se vê uma tourada no caminho, à altura do toiro, com as raparigas a verem, sentir o cheiro do animal, estar perto do cenário, passar uns sustos valentes, contar histórias e inventar aventuras como os pescadores e os caçadores.
Uma tourada à corda é um fenómeno social único. Milhares de pessoas em convívio, viradas umas para as outras, confraternização e partilha, o toiro a correr para cima e para baixo, capinhas a dar “show” ou simplesmente a fazerem-se espertos, uma ou outra marrada para condimentar as conversas, namoros que começam num olhar cúmplice do caminho para o palanque e do palanque para o caminho, bebedeiras descomunais, amizades que se consolidam à mesa onde tudo se partilha.
A tourada é uma romaria pagã, que atrai gente de todo o lado, onde, como é apanágio desta terra, ricos e pobres, nobres e plebeus se sentam à mesma mesa e partilham a mesma alegria de existir.
Hoje já não ligo a partidos tauromáquicos terceirenses. Mas quando me falam mal do Rego Botelho – para mim sempre Gaspar Baldaya – salta-me uma tampa cá dentro. Instinto da infância.
(Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira no Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio)