O bem e o mal reunidos na América

Por Carmo Rodeia

Não costumo escrever dois Entrelinhas na mesma semana, mas ao acordar fui surpreendida (o que já não deveria acontecer!) com a notícia de que a pena de morte vai voltar a ser aplicada, 16 anos depois, pelo Tribunal Federal dos Estados Unidos por expressa indicação da administração Trump, com a autorização das duas câmaras- Congresso e Senado-, para casos de homicídio e de alta traição ao Estado.

O anúncio feito pelo Procurador-geral revelou que vão ser agendadas as execuções de cinco condenados dos 62 que estão no corredor da morte. Mas, atenção, as execuções não vão ser feitas este ano e quando forem agendadas será administrada apenas uma substância letal em vez de três como acontece atualmente nos Estados onde ainda existe a pena capital. Ficámos todos muito mais tranquilos porque condenar à morte alguém é muito diferente se é por enforcamento, injeção e choque elétrico e já agora por decapitação. Peço desculpa, esta prática não entra nos EUA porque é uma prática demasiado bárbara, própria dos outros fundamentalistas que estão lá para os lados do Médio Oriente. Nos EUA mata-se mas com toda a dignidade; não se vê o sangue… Faz toda a diferença.

Como me tinha deitado a ler a newsletter da Ecclesia, agência de noticias da Igreja, que dava conta desse grande acontecimento de juventude nos EUA que é a realização do Jamboree 2019, no qual participam 45 mil escuteiros, apelidados de “força imparável de fazer o bem”, pelo embaixador mundial do Escutismo, o conhecido apresentador de televisão Bear Grylls, fiquei perplexa com a forma como o bem e o mal coincidem neste país que nos habituámos a ver como amigo e como o grande paladino das democracias ocidentais e do avanço civilizacional. Era o que nos diziam constantemente.  Aliás, não deixa de ser curioso que este encontro do Escutismo mundial está a ser co-organizado por três países – Canadá, Estados Unidos da América e México, aquele país que dita a fronteira que separa os bons e os maus, no léxico trumpista.

Faz agora um ano, o Papa Francisco alterou formalmente o Catecismo da Igreja Católica sobre a pena de morte, considerando-a inadmissível em qualquer circunstância.

“A Igreja ensina, à luz do Evangelho, que a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e dignidade da pessoa, e empenha-se com determinação a favor da sua abolição em todo o mundo”.

“Hoje vai-se tornando cada vez mais viva a consciência de que a dignidade da pessoa não se perde, mesmo depois de ter cometido crimes gravíssimos. Além disso, difundiu-se uma nova compreensão do sentido das sanções penais por parte do Estado”, prossegue a nova redação do Catecismo oficial da Igreja Católica.

Na altura ninguém terá ficado perplexo com a decisão do Santo Padre (eu pelo menos não fiquei), porque se inscrevia na mais elementar adequação da doutrina ao Evangelho. De resto, o Papa já em setembro de 2015 tinha feito um discurso no Congresso norte-americano, em Washington, onde tinha afirmado que “Uma vez que todas as vidas são sagradas, cada ser humano tem uma dignidade inalienável, e a sociedade só pode beneficiar da reabilitação dos que são condenados”.

A sua posição de defesa da Regra de Ouro – que as pessoas devem tratar os outros como querem ser tratadas – responsabilizava e responsabiliza todos por proteger a vida humana em todas as fases do desenvolvimento. O que explica também, a sua afirmação peremptória (e bem!) contra o aborto.

Porque a questão é esta: ou se é pela vida ou não se é. O nível civilizacional de um povo também se mede por aqui. O desenvolvimento e as condições materiais são importantes. Mas acima de tudo está a vida. Os Estados Unidos hoje mostraram ao mundo o contrário. É demais em tão pouco tempo.

 

 

 

Scroll to Top