Festas do Divino Espírito Santo foram canceladas por causa da covid-19. Igreja e mordomos acordaram que este ano não haveria coroações
Arma-se o quarto, reza-se o terço, com um número reduzido de irmãos, observando todas as regras determinadas pelas autoridades eclesiástica e de saúde mas não se vai à Igreja coroar nem se vem para o terreiro confraternizar.
Nem as festas do Divino Espírito Santo foram poupadas à ação da covid-19 e por causa da pandemia autoridades e mordomos da festa decidiram cancelar as celebrações deste ano mantendo-se os imperadores e as sortes tiradas no próximo ano.
“Foi uma decisão difícil mas que revela uma grande leitura de fé por parte de todos os intervenientes” dizia em abril ao Igreja Açores o ouvidor da Praia da Vitória, padre Emanuel Valadão Vaz, que foi o primeiro a anunciar a suspensão destas festas.
Esta sexta feira e até à segunda feira da Trindade, no dia 8 de junho, nas ilhas açorianas a festa saía à rua, particularmente nas ilhas do grupo central onde se mantém a tradição mais genuína da partilha. Os impérios de Pentecostes iniciar-se-iam este sábado com o Império da Silveira no Pico e prolongar-se-iam com o dia de bodo, na ilha Terceira até à Trindade. Mas, todas as ilhas, celebrariam na rua as Festas do Divino Espirito Santo.
“Faço um apelo a todos os mordomos e irmãos dos diferentes impérios de São Miguel e de Santa Maria que respeitam as determinações das autoridades e este ano não façam as festas que nos são tão queridas” apela o Vigário Episcopal para a Vigararia Nascente.
“Este ano as festas foram também engolidas pela onda avassaladora de cancelamentos, precoces e absolutos, que assola Portugal. Nem o Divino exceptuado!”, lamenta o cronista do Sítio Igreja Açores Renato Moura, num texto assinado esta sexta feira e publicado aqui.
Este culto, que remonta ao século XIV, é uma das mais antigas manifestações do catolicismo popular português. Os festejos acontecem cinquenta dias após a Páscoa, enaltecendo o Dia de Pentecostes, quando, segundo reza a história, o Espírito Santo desceu sobre a Virgem Maria e os Apóstolos.
A peculiaridade principal deste culto no arquipélago é ser popular e desenvolver-se sob a forma de império, com uma forte carga profética e política, sem qualquer pretensão de imitação de papéis ou destituição de poderes.
À volta dos Impérios desenvolvem-se durante vários dias as festividades do Espírito Santo, imbuídas de um ideal caritativo e compostas por um conjunto de cerimónias religiosas e profanas: a “coroação” do Imperador Menino, o desfile de cortejos e o bodo de pão e de carne.
Durante cada semana das festividades veneram-se as insígnias do Divino na casa do Imperador e reza-se o terço à noite perante a coroa e a bandeira. Na sexta-feira, os bois seriam enfeitados e realizava-se a “procissão do vitelo”. Posteriormente, sacrificavam-se os animais necessários para o bodo que o Imperador ofereceria no domingo aos convidados, retalhava-se a carne para a sopa, o cozido e a alcatra do jantar e para as pensões a distribuir pelos pobres da freguesia. No sábado fazia-se a distribuição de esmolas, compostas de carne, pão e vinho, benzidas pelo sacerdote.
No domingo de manhã realizava-se a primeira procissão, encabeçada pela bandeira do Espírito Santo. Na cerimónia da “coroação”, dentro da igreja, o padre tomaria o cetro, dá-lo-ia a beijar a quem coroa e entregar-lho-ia, e depois faria o mesmo com a coroa, colocando-a sobre a sua cabeça; aspergia o Imperador, incensava-o e entoava-se o “Veni Creator Espiritus”. Depois da coroação a Coroa e a Bandeira iriam em procissão até ao Império, de onde sairia à noite para outra casa.
Era também no domingo que se realizava o bodo ou a “função” para o qual todos eram convidados, ricos e pobres, habitantes ou forasteiros. A ementa da “função” seria composta pela sopa do Espírito Santo, alcatra, pão, armazenados nos Impérios ou nas despensas, pela massa sovada ou pelas rosquilhas (Pico) e vinho. Os irmãos escolhidos para realizar o bodo designam-se de Mordomos.
As festas do Espírito Santo começam no domingo imediatamente a seguir à Páscoa tendo como ponto alto nas ilhas referidas o domingo de Pentecostes e o da Trindade.
“O Bodo, que celebraríamos no próximo Domingo, era, na minha infância, a festa mais bela e esperada de toda a ilha Terceira” afirma o padre José Júlio Rocha na crónica semanal que faz para o Diário Insular e que o Igreja Açores publica na rubrica Moral da História.
“No Bodo vivia-se uma fraternidade, igualdade e liberdade que não eram possíveis noutros dias. Nobres e pobres bebiam vinho da mesma vasilha ou até do mesmo copo, comiam do mesmo pão, rezavam ao mesmo Espírito Santo, coroavam da mesma coroa, celebravam a mesma esmola e cantavam o mesmo louvor, numa celebração que nunca deixou de ter o seu quê de subversivo e perturbador para a própria Igreja e para a sociedade em geral” escreve o sacerdote.
“ O Imperador sem exércitos, sem política, sem dinheiro e sem influência social era exaltado acima de todos aqueles poderes, porque o Espírito Santo sopra onde quer e subverte os poderes instalados. Força dos fracos, pão dos pobres, advogado dos humildes, o Espírito Santo “inspirava” a uma linguagem universal de amor que suplantaria toda a arrogância com que o homem envenenara o mundo” sublinha ainda.
“Esta é uma época repleta de controvérsia. Governantes, investigadores, jornalistas e pessoas em geral só ganhariam em aproveitar a iluminação do Espírito Santo. Evitar a arrogância do saber, ter a humildade de reconhecer que Ele nos ensinará. Abrandar a intransigência das convicções e decisões, e deixar que Ele a todos conduza à verdade”, afirma por seu lado Renato Moura.
Na segunda feira de Pentecostes celebra-se o Dia dos Açores, mas este ano as comemorações serão feitas a partir das redes sociais.