Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Angra está à beira de completar um ano de mandato e em entrevista ao Sítio Igreja Açores fala da situação financeira da instituição “que não é confortável” e dos desafios futuros que partem sempre do principio “de porta aberta”
Sítio Igreja Açores- Há quase um ano que dirige a Santa Casa da Misericórdia de Angra do Heroísmo (SCMAH). Tinha como prioridade a homologação das camas de cuidados paliativos e continuados com a Região. Em que ponto está esse processo?
Bento Barcelos- Sim, os atuais órgãos sociais da Santa Casa da Misericórdia de Angra do Heroísmo foram eleitos a 16 de dezembro de 2013 tendo tomado posse no dia 9 de janeiro de 2014. As áreas dos idosos e dos cuidados gerais a estes, foram áreas fortes do programa de ação para esta Mesa Administrativa. Durante este período, propusemo-nos a colaborar com o Governo dos Açores, nomeadamente na expansão necessária e urgente dos Cuidados Continuados na Ilha Terceira, incluindo esta Instituição na Rede Regional de Cuidados Continuados Integrados. O primeiro objetivo, que corresponde também à primeira fase deste processo, encontra-se concluído tendo já sido acordado entre as partes a formalização de um Protocolo que prevê a conversão do atual Centro de Cuidados Geriátricos, e de parte da Enfermaria do Lar de Idosos, em Unidade de Cuidados Continuados, no âmbito da qual a Misericórdia de Angra passará a gerir, já após o mês de janeiro de 2015, 45 camas da RRCCI, das quais 30 na modalidade de cuidados de longa duração e 15 na modalidade de média duração e reabilitação. A legislação regional aplicável a esta terceira rede dos cuidados prevê a prestação de cuidados paliativos, na modalidade de internamento, apenas em meio hospitalar, pelo que não nos é permitida a proposta de integração de camas nesta tipologia.
O nosso segundo objetivo prende-se com a recuperação do antigo Convento das Concecionistas/antigo Hospital da Misericórdia, importante elemento identitário desta Instituição e da cidade de Angra do Heroísmo. No âmbito deste projeto, cujas condições de concretização se encontram em negociação com os departamentos competentes do Governo Regional, tendo em vista a obtenção dos necessários apoios comunitários para a sua execução, o objetivo será afetar uma parte do espaço físico disponível para a construção de uma infraestrutura destinada a ampliar a resposta em termos de cuidados continuados sociais e de saúde, integrando uma unidade de intervenção especializada para pessoas portadoras de demência, nomeadamente, Alzheimer.
Sítio Igreja Açores- O novo quadro regulamentar de transferências da região para as Misericórdias e restantes IPSS´S já está em vigor. De que forma afetou as finanças da SCMAH?
Bento Barcelos- O novo quadro regulamentar dos Acordos de Cooperação entre a Região e as Misericórdias e IPSS’s, assente no financiamento Valor-Cliente, corresponde ao resultado de uma revisão dos mecanismos de financiamento a estas Instituições, concebido com o objetivo de introduzir maior rigor, transparência, justiça e equidade na distribuição e aplicação dos dinheiros públicos. Trata-se de um desafio novo, que acontece a um nível mais macro, para as Instituições do Setor Social, e que tem exigido um esforço conjunto, num ambiente de diálogo entre estas Instituições e o Governo, tendo em vista enfrentar a grave crise que afeta o presente e compromete o futuro dos sistemas de segurança social em Portugal e em toda a Europa.
Na sequência da implementação deste novo modelo que regulamenta as transferências da Região para as Misericórdias, não houve despedimentos na Misericórdia de Angra mas apenas a revisão de modalidades anteriores de prestação de serviços e outras, bem como a adoção de mecanismos internos de organização no âmbito dos recursos humanos disponíveis e aquisição de bens e serviços, em ordem a evitar, sempre que possível, acréscimo de custos para assegurar o exigente funcionamento da Instituição.
No universo das Misericórdias nos Açores, não tenho conhecimento de se terem concretizado situações de despedimentos, apesar dessa preocupação ter estado e estar, eventualmente, ainda em cima da mesa para muitas das nossas Instituições, a braços com o desafio, de gestão num novo enquadramento financeiro, criado pela implementação do novo modelo de financiamento para as IPSS’s e Misericórdias.
Este novo modelo, que prevê a atribuição de um Valor-Cliente, impõe uma nova lógica de gestão para as nossas Instituições. Esta nova lógica não é necessariamente má, mas obrigará à revisão de prioridades, redimensionamento dos quadros de pessoal de acordo com as necessidades, introdução de novos critérios de rigor na gestão dos recursos financeiros, a procura de sinergias materializadas em parcerias locais numa lógica de partilha de know-hov e de capacidades materiais e humanas.
Sítio Igreja Açores- Como é que classificaria a situação financeira da Instituição?
Bento Barcelos- A situação financeira da Instituição, à semelhança das demais instituições congéneres na Região e no país, não é, de modo nenhum, uma situação confortável. Dificilmente o seria, de resto, num contexto como o que atualmente vivemos. A realidade financeira da nossa Instituição é de dificuldade e, portanto, de contenção, que nos impõe uma gestão pautada por critérios de rigor na administração dos recursos disponíveis, assegurando, no entanto, a manutenção da normal atividade da Instituição, dos seus níveis de qualidade e dos compromissos assumidos.
Sítio Igreja Açores- O facto da SCMAH ter uma instituição bancária associada e um património sustentável, dá outro conforto em termos de estabilidade financeira?
Bento Barcelos– A Santa Casa da Misericórdia de Angra do Heroísmo é uma instituição com 516 anos de existência. Possui um património imóvel considerável, as Farmácias sociais ou de comunidade e a Caixa Económica, única do seu género no nosso país, da qual é acionista exclusiva. Não sendo, de modo nenhum, de descurar, a importância destes fatores para a sustentabilidade financeira desta Instituição, é de salientar que a Santa Casa de Angra cresceu muito desde os meados dos anos 90 do séc. XX. Parte desse crescimento corresponde a um volume de atividades e serviços não suportados ao abrigo dos acordos de cooperação e, mesmo nas respostas sociais abrangidas por estes, foram introduzidos fatores de despesa não cobertos pelo financiamento público. Refiro-me, neste ponto, ao alargamento muito expressivo do quadro técnico da Instituição, nomeadamente da equipa de enfermagem, o investimento em estruturas de suporte e uma maior abrangência de valências.
Sítio Igreja Açores- Houve alguns momentos de tensão com o Governo Regional num passado recente. A nova responsável pela tutela da segurança social era vice provedora da Instituição. Isso ajudou a amenizar o relacionamento institucional?
Bento Barcelos– Desde a tomada de posse dos atuais órgãos sociais que a relação com o Governo dos Açores, designadamente com os responsáveis pelos departamentos competentes em matéria de segurança social, saúde e educação tem assentado em pressupostos de diálogo aberto e franco, tendo em vista a negociação possível das condições de articulação entre os órgãos do poder político da Região e do poder local e as Misericórdias dos Açores enquanto Instituições do Terceiro Setor, que almejam um estatuto de parceiras por excelência do Governo na prossecução das políticas sociais na Região. A atual Secretária Regional da Segurança Social, Dra. Andreia Cardoso, integrou, de facto, a Mesa Administrativa desta Instituição, na qualidade de Vice-Provedora até ao momento em que solicitou a suspensão do cargo para assunção das funções políticas que atualmente desempenha. A passagem da Dra. Andreia Cardoso pela Misericórdia de Angra, na qualidade de dirigente, terá contribuído sobremaneira não para amenizar o relacionamento institucional, até porque esse relacionamento tem sido o desejável desde que tomaram posse os atuais órgãos sociais da Misericórdia de Angra, mas para uma ação política necessariamente mais informada e esclarecida de quem, tendo tido já a experiência na área da segurança social, enquanto Diretora Regional, teve agora oportunidade de conhecer, no terreno, os constrangimentos, as dificuldades, as limitações, mas também as enormes potencialidades duma Instituição multissecular como é a Misericórdia de Angra.
Sítio Igreja Açores- Há 400 misericórdias em todo o país. Consegue-se falar a uma só voz? Nos Açores, por exemplo, onde existe mais do que uma Misericórdia por Concelho?
Bento Barcelos- Nos Açores são 23 as Misericórdias, o que significa a existência de mais do que uma Misericórdia por concelho. Ora esta realidade prefigura uma apetência estrutural da sociedade civil para as causas sociais.
Pela forma como surgiram na sociedade portuguesa, como têm evoluído e como têm sabido adaptar-se às mudanças sociais globais e de cada localidade onde se inserem, sem perder a sua matriz identitária, as Misericórdias constituem hoje a forma mais expressiva da solidariedade organizada. São, pois, Instituições genuinamente sociais, que não perderam a sua atualidade e que, hoje, como há mais de meio milénio, se regem por uma matriz de princípios orientadores da sua ação, assentes nas catorze obras de Misericórdia. Esta unicidade de princípios, fundamentais para a manutenção da sua identidade afirma-se, no entanto, perfeitamente compatível, com as especificidades de cada lugar ou comunidade onde foram criadas para responder a necessidades sociais.
Sítio Igreja Açores- A“arquitetura assistencial”, característica reconhecida nas misericórdias, é composta por “aspetos funcionais e simbólicos” da ação que desenvolvem em três eixos essenciais: o espirito, a saúde e a ação social. Estão as misericórdias dos Açores a fazê-lo, em concreto a SCMAH?
Bento Barcelos– Vivemos um tempo difícil e de privação socioeconómica que afeta de modo particular as famílias e os indivíduos. A situação de crise que caracteriza a sociedade portuguesa, desde há alguns anos a esta parte, deu origem a novas situações de pobreza e a novos pobres num contexto em que a ausência e/ou precaridade do emprego comprometem seriamente a condições de vida, e muitas vezes a satisfação de necessidades básicas cruciais para assegurar as condições mínimas de dignidade a que todo o ser humano tem direito. O acentuar desta realidade tem colocado novos desafios à ação das Misericórdias dos Açores e de todas as Instituições do Terceiro Setor em geral.
Sítio Igreja Açores- Quais são os grandes desafios da instituição?
Bento Barcelos- Neste momento, posso identificar duas categorias de desafios: os mais imediatos e os de médio prazo.
No que se refere aos mais imediatos considero: a resposta, em regime de “porta aberta” a todos os que diariamente nos procuram e a gestão rigorosa dos recursos disponíveis de modo a garantir a qualidade dos serviços sociais que prestamos aos utentes e a manutenção do emprego necessário para garantir os mesmos.
No médio prazo, identifico os desafios comuns às Instituições do Terceiro Setor em geral: o crescimento inteligente, inclusivo e sustentável. Neste âmbito, considero a importância de três grandes pilares que sustentarão o desenvolvimento das Misericórdias num futuro próximo: o novo enquadramento legal para as IPSS’s e Misericórdias, consubstanciado no recentemente publicado Decreto-Lei nº 172-A/2014, de 14 de novembro, assente na não menos importante Lei de Bases da Economia Social (Lei nº30/2013, de 8 de maio), as parcerias sociais e com os órgãos do poder local e regional e as potencialidades de desenvolvimento associadas à implementação do novo quadro comunitário Horizonte 2014-2020.
Estas serão ferramentas cruciais para que as Misericórdias dos Açores possam cumprir os seus desideratos para o século XXI: aumentar a sua sustentabilidade numa lógica de crescente redução dos níveis de dependência financeira, no pressuposto, no entanto, da parceria sempre necessária com os poderes públicos, responsáveis pelas políticas sociais, beneficiar das potencialidades da nova lei da economia social para criar novas respostas sociais, numa lógica de inovação social e de obtenção de receita para investimento em projetos sociais e melhoria/expansão ao nível das respostas sociais de apoio às pessoas mais vulneráveis e frágeis da nossa comunidade. Esta constitui uma área de excelência, pela experiência acumulada destas Instituições, e prioritária face aos cenários demográficos atuais e prospetivos, em especifico, no âmbito dos idosos.
Sítio Igreja Açores- Isso pressupõe novos serviços…
Bento Barcelos– Neste âmbito, impõem-se novas soluções para a população idosa e muito idosa, em situação de dependência. Os cuidados continuados, e nestes, os de longa duração, a intervenção especializada na área das demências, o apoio domiciliário integrado como alternativa ao internamento em Lares e as soluções inovadoras para uma população idosa socialmente heterogénea nos seus interesses e necessidades, são alguns dos desafios para as próximas décadas. A certificação da qualidade dos cuidados e a responsabilidade social são também objetivos para alcançar novos patamares de excelência destas Instituições. Nesta linha de ideias, e concretamente no que à Misericórdia de Angra diz respeito, constitui prioridade a construção de uma infraestrutura orientada para os cuidados continuados, com uma unidade especializada de intervenção em demências e o investimento na resposta em apoio domiciliário como forma de garantir a redução do número de internamentos em Lar, o apoio às famílias e à conciliação entre a vida profissional e a vida familiar, o aumento dos níveis de integração social e familiar da pessoa idosa e a admissão, após as altas hospitalares, de pessoas portadoras de doença cronica e de elevada dependência física e social.
Sítio Igreja Açores- O senhor foi eleito num contexto de alguma conturbação. Estão sanados os diferendos entre os irmãos?
Bento Barcelos– A mudança é sempre difícil, particularmente quando acontece na sequência de lideranças que se prolongaram no tempo e numa Instituição com a mais numerosa massa associativa de entre as suas congéneres nos Açores. Foi um processo dinâmico, caracterizado pela surgimento de projetos diferentes, apresentados por irmãos com distintas sensibilidades, mas democraticamente resolvido e com uma sã participação dos irmãos na vida da Instituição, como é desejável, o que se tem vindo a verificar nos mais variados momentos ao longo deste ano.