Por Francisco Maduro Dias
Este ano, na Terceira, não vejo os mastros grandes, junto aos Impérios, com as bandeiras vermelhas ou coloridas, drapejando ao vento de Maio!
Este ano, na Terceira, não haverá ajuntamentos no “meu” terreiro de São Bartolomeu, e nos outros lugares do costume, para que, cada um, com o seu saquinho e o cartão indicador da esmola, recolha pão, vinho e carne, por igual, para levar para casa e fazer a sua refeição festiva, em honra e louvor do Paráclito.
Este ano, na Terceira, quem quiser alcatra, terá de procurar outros modos e caminhos, pois as mestras e mestres não andarão, de freguesia em freguesia, mostrando o seu saber, em manjares, saborosos e abundantes, de sopa, de carne, de alcatra e de arroz doce.
Este ano, seja de cheiro ou verdelho, quem quiser beber vinho, em honra e louvor do Divino, terá de o fazer por si.
Este ano, infelizmente, não haverá pézinho, cantado aqui e ali, nem bandas de música a alegrar caminhos, nem o estalar de foguetes, a animar os céus e as almas.
Este ano não terei, a correr diante do meu muro, os toiros da tourada do Bodo.
Enfim. A pandemia, o resguardo e a necessidade de distanciamento físico – que não o social – determinaram que nada do que é costume acontecer, por esta ilha e por estas ilhas, entre a Páscoa e a Trindade, aconteça este ano.
Tempos do Espírito Santo, tempos de partilha e confraternização, tempos sempre comemorados anos e séculos a fio, são, assim, interrompidos por um malfadado vírus, de ínfima dimensão física, mas de enormíssima dimensão real, no impacto, na alteração forçada do rumo habitual da vida e das coisas.
Claro que acredito que muitos irão comemorar, nas suas casas, este tempo.
Não é por causa de um vírus que não irei levantar o meu copo em honra do Divino, saborear sopas, alcatra e arroz doce, colocar, no meio da minha mesa, a coroa que tenho em casa e conviver, em família e em partilha, de pão, carne e vinho.
Não será por causa de um vírus que irei esquecer este tempo do ano em que o ar, o calor, às vezes o fresquinho ventoso, ainda a saber a Primavera, me acordam, cá dentro o sentir e me lembram o tempo em que estou, o do Senhor que é Espírito.
Mas, no meio disto tudo – ou talvez por isso – dei comigo a pensar, mais do que o costume, porque isto de uma festa mexer com a gente, cá dentro, acaba por levar a pensar, mais que o costume.
E partilho.
Não é preciso muito para se perceber que esta festa é uma festa de partilha, de irmandade, de confraternização, e guardo, com muito respeito, a forma como os meus patrícios – assim se referia Nemésio aos conterrâneos – dizem que já “serviram o império, duas, três, quatro vezes”.
Serviram! Não se serviram! É isso que gostaria de deixar aqui, hoje, vincado.
As nossas festas em Honra e Louvor do Senhor Espírito Santo são festas com um cunho muito marcado pela sua origem, quando a carne e o pão eram raros, quando a fome podia aparecer com facilidade, quando a água era a bebida de todos os dias. Nestes dias, ao menos uma vez no ano, todos tinham carne, tinham pão, bebiam vinho, se saciavam das quotidianas misérias e faltas, de meses a fio.
Nós, nos Açores, que nos orgulhamos de guardar esta Festa, desde há séculos, temos o dever de nos lembrar sempre disso, e de o lembrar aos outros, num mundo como o de hoje, egoísta, egocêntrico e individualista, mantendo viva essa essência de partilha, confraternização e interajuda.
Feliz Domingo de Bodo e que o copo de cada um, em casa, se levante, em honra e Louvor do Senhor Espírito Santo!
*Este artigo foi publicado na edição de sábado do Diário Insular e partilhado pelo autor com o Igreja Açores