Por Carmo Rodeia
Passei uns dias em Lisboa, nesta quadra natalícia. E desci a pé, várias vezes, as Avenidas Almirante Reis e da Liberdade. Paredes meias com o comércio de luxo, das grandes marcas- dizem que a Avenida da Liberdade é, no equivalente à milha de São Francisco, o lugar mais caro de Lisboa, para fazer compras- há um cenário de pobreza extrema, povoado por um incontável número de sem-abrigo, que se amontoa em papelões, que improvisam “camas”, cobertas com outros papelões ou cobertores sujos pela dureza da vida.
O fenómeno dos sem-abrigo não é exclusivo de Portugal por ser um país pobre. O jornal “The Economist” dava conta, por estes dias, que nos últimos anos o número dos sem-abrigo aumentou muito em países europeus mais prósperos do que o nosso. Por exemplo, os sem-abrigo terão duplicado em França e na Holanda. Em Espanha aumentaram 21% entre 2014 e 2016. E na Alemanha terão chegado em 2018 ao número “record” de 678 mil, na sua maioria imigrantes. Em Portugal, segundo as estatísticas oficiais, existem cerca de 3.400 pessoas a nível nacional. Menos de metade eram pessoas efetivamente sem tecto.
A narrativa oficial recomenda-nos que temos de distinguir dois grandes grupos: as pessoas que estão sem tecto (estão na rua, em prédios abandonados ou em carros) e as pessoas que mesmo não estando na rua estão sem casa (têm um alojamento que pode ser temporário e não é suportado pelos seus próprios meios). A maior parte está na área metropolitana de Lisboa e são homens. Associado à condição de sem-abrigo, estão outros problemas sociais como a carência económica, problemas de dependências e de saúde, desde saúde física a saúde mental. Nas zonas metropolitanas, prevalece muito mais uma dependência do álcool, outras vezes de substâncias ilícitas.
Quando em 1992 estive a frequentar um curso na Columbia University, em Nova Iorque, acompanhei de perto um projeto de ajuda aos sem-abrigo no Harlem, desenvolvido por uma igreja Baptista. E uma das muitas perguntas que fazia diariamente aos técnicos, e que ainda hoje faço, é o que é que mantem as pessoas na rua e se muitas delas ali ficam porque querem ou porque não se adaptam a regras ou rotinas organizadas. E, o que me dizem, recorrentemente é que é tudo junto, embora seja um mito urbano esta ideia de que as pessoas estão na rua porque querem.
As frustrações acumuladas, as tentativas que não resultam; um desemprego duradoiro; uma desestruturação familiar; um conflito são situações que podem levar à rua. Lembro-me que nesse tal projeto americano cheguei a falar com dois sem-brigo doutorados, que tinham uma vida estável, até ao dia…Mas ninguém gosta ou quer ficar na rua. São pessoas que precisam de laços, tal como nós; se não os têm objetivamente não verão outra alternativa senão ali permanecerem; mas se o conseguirmos estabelecer certamente que ninguém nos dirá “deixe-me em paz, esta é a minha casa”. Ninguém quer, a não ser por um devaneio de juventude, um estilo de vida mais alternativo, ficar na rua. E, nesses casos, não estaremos porventura a falar de uma pessoa sem-abrigo.
Então a pergunta volta a colocar-se: se assim é porque há tantos sem-abrigo? É uma questão de dinheiro e de casa, de saúde, sobretudo saúde mental ou de falta de respostas concretas e de proximidade a cada uma das situações de sem-abrigo? É sobretudo um falhanço da nossa sociedade. Dir-me-ão: sempre existiram sem-abrigo, e eu responderei: sempre, porque nós falhamos. Falhámos ontem, falhamos hoje e muito provavelmente falharemos amanhã. Então o assunto está arrumado: não há volta a dar!. Não, não está. A Finlândia, onde a taxa de sem-abrigo diminuiu mais de 21% mostra-nos que é possível mitigar o problema, tirando as pessoas da rua. Pode demorar tempo; será precisa uma nova estratégia mais concertada e em rede, 24 horas, 365 dias no ano. Mas há-de ser possível, com proximidade e respostas profissionais.
Na poite da passagem de ano, enquanto esperava com o meu filho mais velho para entrar num restaurante para jantar, passou um sem-abrigo. Não sei o nome, mas conheço o rosto de o ver naquelas paragens há já muitos anos. Anos demais para que possa voltar a ter um tecto. Não pediu nada. Como nunca me pediu de cada vez que nos cruzámos. O Francisco ficou tocado e tratou do resto. O homem agradeceu e quando recebeu o saco que lhe dava o conforto de uma refeição quente, benzeu-se. É óbvio que dar comida a quem tem fome não resolve o problema. Dar um prato de comida não tira a pessoa da rua. Nem numa noite nem nunca. Pessoalmente aprendi duas lições: neste mundo, cada vez mais sofrido e cheio de fraturas expostas, pode não haver ninguém verdadeiramente apto a dar respostas definitivas, mas onde há ternura e bondade, há Deus. E o amor que eles nos ensina, vê-se nos atos mais do que nas palavras, besuntadas com clichés sentimentais, na esperança de uma eternidade que um dia há-de chegar, quando afinal o Céu está tão próximo, no outro. Ainda que seja um sem-abrigo. É deste laço que eles precisam tal como nós precisamos. Cada um à sua medida, mesmo que o rejeitemos uma vez, e outra, e outra… até ao dia em que nos levantamos. Aí assim conseguiremos tirar as pessoas da rua.