Por Carmo Rodeia
Sinceramente não percebo alguns fazedores de opinião/jornalistas que no final da cimeira do Vaticano, sobre os abusos e a proteção de menores, convocada pelo Papa Francisco, que reuniu à sua volta 190 responsáveis das conferências episcopais de todo o mundo, incluindo os líderes da Igreja Católica Oriental, Institutos e Congregações religiosas e leigos, tenham escrito que o encontro ficou aquém das expetativas e que se esperavam mais medidas concretas. E esta minha dificuldade de compreender alguns títulos que se escreveram é genuína pois não percebo o que estariam à espera. O próprio Papa já tinha deixado claro que algumas das expectativas sobre esta cimeira eram exageradas, até porque todos sabemos que em matéria de decisões da igreja há sempre uns que acham que ainda não se foi suficientemente longe e outros que acham que já se foi longe de mais, mesmo quando em causa não está qualquer dogma de fé mas apenas mudança de regras adequada ao tempo.
Quem acompanhou a Cimeira terá de fazer justiça na análise: os resultados deste encontro apenas a médio prazo poderão ser avaliados. Dependerá de todos nós, embora só por si a Cimeira já tenha sido um avanço sem precedentes. Não tenho dúvidas de que há na Igreja um antes e um depois desta Cimeira.
Por outro lado, todas as intervenções do Papa e dos principais responsáveis ouvidos foram tão contundentes que é difícil prever que não haja uma conduta diferente da que existiu até agora.
Ver e ouvir os relatos dos sofrimentos de algumas dessas vítimas é um autêntico murro no estômago. Mas é um choque e uma dor necessários, sobretudo no nosso país, onde andamos embalados na provável ilusão de que as agressões sexuais por parte de padres são uma pequeníssima exceção.
Last but not the least, quer o documento inicial com 21 pontos quer o documento final do Papa são muito mais do que intenções dando orientações claríssimas sobre a prática que se exige da hierarquia desde domingo em diante. A menos que os responsáveis continuem a colocar a cabeça na areia como a tal avestruz, como tão bem referiu a jornalista mexicana Valentina Alazraki, que desancou de alto a baixo a hierarquia ao sublinhar, por exemplo, a necessidade de uma tomada de consciência por parte da Igreja de que quanto “mais se encobre, quanto mais são como avestruzes, quanto menos informem os meios de comunicação e, por isso, os fiéis e a opinião pública, maior será o escândalo”. Ou lembrar, aos mais distraídos, que “Para uma mãe não há filhos de primeira e de segunda, mas há filhos mais fortes e filhos mais vulneráveis. Também para a Igreja não há filhos de primeira e de segunda. Os seus filhos aparentemente mais importantes, como são vocês, bispos e cardeais (não me atrevo a dizer o Papa), não são mais importantes que qualquer menino, menina ou jovem que tenha vivido a tragédia de ser vítima de abusos por parte de um clérigo”.
Infelizmente, para todos nós, os abusos e a pedofilia acontecem em muitas outras instituições e em muitos outros sítios. Aliás, a maioria dos casos acontece no seio da família ou da rede de proximidade dos abusados. Mas a Igreja e o seu clero têm especiais responsabilidades porque a sua missão é proteger os mais fracos. O Papa Francisco lembrou-o na sua intervenção final: “devemos ser claros: a universalidade de tal flagelo, ao mesmo tempo que confirma a sua gravidade nas nossas sociedades, não diminui a sua monstruosidade dentro da Igreja”.
“A desumanidade do fenómeno, a nível mundial, torna-se ainda mais grave e escandalosa na Igreja, porque está em contraste com a sua autoridade moral e a sua credibilidade ética. O consagrado, escolhido por Deus para guiar as almas à salvação, deixa-se subjugar pela sua fragilidade humana ou pela sua doença, tornando-se assim um instrumento de satanás. Nos abusos, vemos a mão do mal que não poupa sequer a inocência das crianças. Não há explicações suficientes para estes abusos contra as crianças. Com humildade e coragem, devemos reconhecer que estamos perante o mistério do mal, que se encarniça contra os mais frágeis, porque são imagem de Jesus”, disse ainda.
Acabo de ver uma reportagem sobre os crimes alegadamente praticados por um padre marista catalão, de nome Joaquin, e que terá abusado de vários alunos, que ao mesmo tempo integravam as equipas desportivas que tão bem organizava no colégio onde dava aulas e onde era considerado pela maioria como um professor top.
A reportagem é absolutamente devastadora, deixando-nos sem fôlego a ouvir quem denunciou, as vítimas, os seus familiares e o próprio. Os artefactos que utiliza para se defender, ainda que reconhecendo que o seu comportamento não foi digno, são incompreensíveis e intoleráveis. E revelam, aqui e ali tiques de arrogância próprias de quem não tem pejo em usar o poder em seu beneficio, completamente fora da realidade, quase sem consciência moral dos seus atos. Um homem que faz isto é um homem em queda, como dizia ainda no domingo Henrique Raposo, na sua crónica na Rádio Renascença.
O que saiu da Cimeira julgo que não é assim tão pouco, queira a hierarquia da Igreja dar seguimento às orientações.
A necessidade de denúncia em vez de encobrimento é comumente aceite como um dado adquirido. Desde logo às autoridades policiais e judiciais, que têm meios próprios e mais eficazes do que a Igreja para investigar.
Os abusos, e em especial a pedofilia, são um crime e é como tal que têm de ser tratados. O acompanhamento dos agressores deve ser feito depois da prioridade dada às vítimas. Mas não podem deixar de ser punidos.
As 8 linhas orientadoras da ação da Igreja, apresentadas pelo papa são claras: a proteção das crianças; a seriedade impecável das cúpulas; uma verdadeira purificação, com um renovado e perene empenho na santidade dos pastores “cuja configuração a Cristo Bom Pastor é um direito do povo de Deus”; a formação visando excluir as personalidades problemáticas; o reforço das diretrizes ao nível das conferências episcopais; o acompanhamento das vítimas; uma atenção ao mundo digital e uma especial atenção ao turismo sexual. São um bom ponto de partida mas, chegados aqui e agora, há que discutir outros assuntos. E mais do que a homossexualidade dentro da igreja, que é importante, julgo que a grande prioridade é mesmo discutir o celibato. Não é uma causa direta da pedofília mas pode ser um fator que potencia abusos e tentativas de aproximação indevidas. Aliás, o próprio padre Hans Zollner, um dos organizadores da Cimeira, escolhido pelo Papa, afirmou no inicio dos trabalhos: “a forma de vida celibatária torna-se num fator de risco quando a via sacerdotal entra em crise”. Isto é, a integridade moral pode durar alguns anos e depois começa a desmoronar-se devido à solidão e ausência de laços afetivos além dos laços paroquiais.
Passar anos e anos sem uma relação de amor e partilha, com tudo o que isso implica, só pode ser um fardo e suportar esse fardo não é para todos, sem cair na tentação de se considerar que quem não consegue é um pior pastor. Bem pelo contrário.
Cada vez estou mais convencida de que a regra da obrigatoriedade do celibato deve ser discutida de forma mais séria. Não se trata de a suprimir mas de a tornar facultativa.
A Igreja, que é todo o Povo de Deus, é a maior organização do mundo, mas será sempre composta por homens normais e não por heróis. E uma igreja feita por simples homens pecadores como Pedro só pode ser uma igreja de homens com o direito de casar, de amar e de formar família, como os apóstolos. Seria tudo mais normal. E, neste caso, a normalidade é uma virtude. Mas claro este não era o objeto da Cimeira. Mas pode e deve ser uma consequência…pelo menos ao nível de uma discussão tão séria quanto a que foi sobre o abuso e a proteção de menores.