Por Maria do Céu Patrão Neves, Professor Catedrática de Ética.
Sim, sou contra a eutanásia, contra a antecipação deliberada da morte, em que a eutanásia consiste; sou contra dar a morte a alguém.
Sou contra a eutanásia porque acredito que a vida é um dom de Deus, a ser vivida como um legado que me foi confiado e me compete frutificar, tal como me compete multiplicar todos os dons recebidos de Deus. A vida é assim também um desafio para a liberdade humana que dela dispõe e que a realizará, segundo um projecto que, sendo pessoal, não se fecha num individualismo, mas se desenvolve em comunidade. O católico, na fidelidade a esta verdade da fé, não pode, em coerência, advogar outra posição em relação à eutanásia.
E não aceito rótulos de retrógrada por parte dos auto-designados progressistas, de conservadora por parte dos auto-denominados modernos, de obscurantista por parte dos auto-nomeados iluminados. Nem tão pouco aceito o maniqueísmo dos que desclassificando as convicções dos crentes arvoram uma pretensa superioridade moral na promoção da eutanásia. A dimensão espiritual da vida que cultivamos não nos diminui no debate democrático, mas este, porque é pluralista, exige que a argumentação seja racional e não confessional.
Sou contra a eutanásia porque, à margem da minha fé e do plano subjectivo em que pulsa, reconheço que a vida, num plano estritamente racional e objectivo, é um proto-valor, ou seja, é condição de possibilidade de todos os valores, é fundamento de todo o sentido. A eliminação prematura da vida, despe-a de valor, esvazia-a de sentido, anula a sua razão de ser. A possibilidade da eutanásia instaura a classificação de vidas vãs, de pessoas descartáveis, numa violação gritante da dignidade humana que todos dizem defender, mas alguns ofendem. A dignidade humana corresponde à afirmação do valor absoluto e incondicional da vida, da pessoa. Esta não vale menos por ser idosa, por ter perdido capacidades, por estar doente. Na sociedade solidária que também todos dizem promover, estas vidas reclamam acompanhamento, protecção e assistência. Não se desiste da vida, cuida-se da pessoa.
Olhando para os raros países do mundo que, ao abrigo de uma designada qualidade de vida – não como métrica para a adequação dos cuidados a cada pessoa concreta, mas como critério de exclusão da vida –, instauraram a eutanásia, verificamos que esta vai cobrindo cada vez mais situações – primeiro era só para situações terminais, depois também para incuráveis, entretanto também se alargou à deficiência e agora para todos os que sofrem – e vai-se alargando a cada vez mais pessoas – primeiro admitia-se apenas pessoas que pedissem a eutanásia, depois esta já pode ser pedida por familiares, a seguir já inclui crianças.
Não preciso de ser crente, mas apenas racional para antever que em sociedades envelhecidas e de idosos empobrecidos, com menos pessoas activas a descontarem para mais reformados, com cuidados de saúde cada vez mais caros para o Estado e mais deficientes para os utentes, em que as consultas da dor ou os cuidados paliativos são pouco acessíveis, em que os cuidados continuados e os lares escasseiam, a eutanásia se apresenta como a alternativa para os que consomem mais do que produzem, para os que são um peso para a sociedade. A eutanásia não é uma alternativa, mas a supressão de todas as alternativas. É esta a sociedade que queremos? A eutanásia não é uma escolha pessoal ao abrigo da autonomia individual; é uma opção comunitária por um modelo de sociedade.