“Não é preciso não acreditar em Deus para ser artista”- Margarida Andrade

Jovem artista plástica de 28 anos foi a convidada da 16ª Conversa na Sacristia

Foto: Igreja Açores/PCSJ

É “difícil” hoje em dia trazer a palavra Deus para o contexto artístico, mas a Igreja também tem “feito pouco” para contrariar isso,  afirmou Margarida Andrade na 16ª Conversa na Sacristia, uma iniciativa da pastoral da cultura da Igreja de São José, em Ponta Delgada.

A jovem artista plástica, que nasceu na maior cidade açoriana e depois se formou em Pintura na Faculdade de Belas Artes em Lisboa, refletiu sobre a busca do sentido de pertença a uma comunidade num mundo cada vez mais polarizado por bolhas que dificilmente se tocam, onde se cultiva pouco a “curiosidade” e a “dúvida”. E as questões da fé levantam dúvidas e “impõem um esvaziamento, tal como a criação artística”, como reconheceu.

Margarida Andrade tem saído dos espaços expositivos convencionais, para fugir a ambientes mais egocêntricos, onde o “sucesso” e o “cultivo do eu” se sobrepõem ao da comunidade.

“Acho que essa minha fuga dos espaços expositivos mais convencionais é também essa minha vontade de deixar de elogiar-me a mim própria e de cultivar o meu ego para que as pessoas elogiem as minhas pinturas ou as minhas peças artísticas. E procurar criar espaços seguros onde as pessoas possam sentir-se confortáveis para falar sobre o que quiserem, inclusive partilhar angústias e medos, no caso específico relacionados com a crise climática e com a transformação do planeta” afirmou.

A jovem artista tem complementado  a sua atividade profissional com caminhadas  que, a partir do luto coletivo, convidam a adotar novas formas de relacionamento social entre os humanos e entre estes e a natureza, procurando um novo sentido de pertença, baseado numa ecologia integral, tal como é defendido pelo Papa Francisco na encíclica Laudato Si, fortemente inspirada na relação de irmandade que São Francisco de Assis mantinha com a natureza, falou de fé e da Igreja e da forma como os jovens se afastaram não de Deus mas da instituição.

“Hoje em dia, temos que encontrar outras formas de estar com Deus e acho que ir à missa todos os domingos não é essa maneira para os jovens. Acho que há outras e se calhar essas caminhadas podem ser uma delas ou outras caminhadas, não é? Não têm que ser só as minhas” referiu.

“As vezes parece que se acredita, tem-se uma crença e perde-se a fé. Quando a crença é uma obrigação perde-se a fé. Eu sinto muito isso. E acho que os jovens também sentem muito isso”, afirmou.

“Esta ideia de que é um dever, é uma obrigação, tens que ir à missa, tens que rezar, faz com que se perca totalmente a vontade de ir à missa e de rezar e de acreditar. E depois, a par com isto, acho que também tem a ver com alguns discursos, comportamentos e práticas que se vão vendo na Igreja” acrescenta.

“O Papa Francisco fala em todos, todos, todos, mas na verdade ele não está em todas as paróquias e por isso, isso não é aceite em todo o lado e nem todos, todos, todos são aceites pela Igreja” refere.

E, prossegue:  “o afastamento dos jovens” ou “esta necessidade que eu tenho de procurar uma comunidade”, “nada disto tem a ver com Deus, tem a ver com a Igreja e na verdade, com as pessoas: a Igreja porque nem sempre está à altura e as pessoas porque não perdem um pouco de tempo para ir além da crença; tudo isso contribui para este afastamento”, concluiu.

“O que é necessário, em contexto local, é haver mais abertura, mais tolerância, mais acolhimento” explicitou partilhando a forma como dialoga com Deus e como o faz “quase de forma inconsciente”, mas ciente que a oração, o diálogo com Deus, a ajuda a “estar presente”.

“A busca da comunidade como forma de combater o individualismo, esta minha tentativa de deixar as pinturas, complementando com as caminhadas  é a forma de promover o meu próprio esvaziamento e se calhar aproximar-me mais de Deus”, referiu.

“O Cristianismo não é uma arte de se encher de orgulho, mas sim de esvaziamento. E nós esvaziamo-nos pouco” disse ainda citando o cardeal José Tolentino Mendonça.

“Esvaziar significa realizar no nosso coração aquele movimento que é característico do amor. Porque se refletirmos bem, o amor não é outra coisa, senão um esvaziamento de si mesmo. E, portanto, acho que isso foi algo que eu aprendi com a minha educação católica, não só a formal, mas a informal, em casa, com a minha família” revelou, ainda, numa conversa que oscilou entre uma partilha mais individual e uma reflexão sobre o mundo que a rodeia.

“Vivemos numa sociedade muito polarizada, principalmente as pessoas da minha geração, e mais novas, são pessoas muito revoltadas”, diz por outro lado, lamentando o radicalismo existente em tantos meios.

“A ideia, com a caminhada, é que as pessoas façam uma pausa na sua vida agitada e se sintam convidadas a estar com outras pessoas, fisicamente, não através do telemóvel, conversar, partilhar angústias, medos e, portanto, o que fica depois da caminhada, eu espero que seja uma relação mais próxima com outras espécies, um respeito maior às outras espécies, uma curiosidade maior para conhecer outras espécies que não a nossa e, portanto, a longo prazo, eventualmente, é esse tal esvaziamento de não pensar tanto em nós, mas alargar o nosso campo de visão e de cuidado a outras espécies que não a nossa”, concluiu.

As Conversas na Sacristia são uma iniciativa da paróquia de São José, que procura um diálogo aberto e franco com o mundo, para além da questão religiosa ou de pertença à Igreja Católica, mas sempre centradas na fé e na relação com o transcendente.

 

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