Pelo padre José Júlio Rocha
Quando lá cheguei pela primeira vez, a Itália vivia em estado de choque. O grande Giovanni Falcone, super-juíz anti Máfia, que, com as suas investigações, tinha levado à prisão centenas de mafiosos de calibre superior, trazendo nova esperança uma Itália prisioneira do crime, tinha morrido, meses antes, no atentado de Capaci, no qual minaram cem metros de autoestrada, atirando para os ares o carro e o corpo do herói italiano. A indignação espalhou-se por toda a Itália, com manifestações a pulularem pelas grandes ruas das grandes cidades, sobretudo a mártir Palermo, uma das capitais incontestadas do “estado dentro do Estado” que era a Cosa Nostra.
Quem mais ajudou Falcone terá sido um arrependido da Máfia, um dos grandes padrinhos sicilianos, que, desonrado com o facto de a Máfia já matar, indiscriminadamente, mulheres e crianças, quebrando, assim, os seus códigos de honra (uomini d’onore, diz-se dos grandes mafiosos), decidiu abrir o jogo e contar tudo. Era Tommaso Buscetta, “il superpentito”, cujas confissões viriam a dar nos grandes processos anti Máfia mas viriam também a revirar a política italiana inteira. O que Buscetta contou foi arrasador para a primeira república Italiana, que cirandava à volta da Democracia Cristã e do Partido Comunista. É a partir dos seus testemunhos, e de outros, que Antonio di Pietro, Juiz, iniciou a famosa operação “Mani Pulite”, mãos limpas. Foi toda a história da democracia italiana que entrou em colapso. Disputada, durante a Guerra Fria, pelas potências mundiais, a Itália, entre 1948 e 1994 foi uma espécie de joguete político: financiada pelos Estados Unidos, a Democracia Cristã dominou o espetro político durante esses anos, acompanhada sempre de perto pelo partido Comunista, mais rosa que vermelho, apoiado, evidentemente, pela União Soviética. Toda esta estrutura começa a desabar com a queda do império soviético e o fim da Guerra Fria, com as respetivas superpotências a abandonarem o financiamento aos partidos de Itália. Aconteceu o inevitável. A operação “Mani Pulite” investigou cerca de seis mil pessoas e emitiu quase três mil mandatos de prisão, de entre os quais 428 deputados e ex-deputados, quatro ex-primeiros ministros, levando a uma onda de suicídios sem precedentes na classe política e económica. A Itália era um país intrinsecamente corrompido, até ao tutano, a classe política desmantelada.
É então que aparece um salvador. Nascido em 1936 em Milão, Silvio Berlusconi era o homem mais rico de Itália. A sua fortuna começou nos negócios da construção, sendo ele responsável por um dos empreendimentos mais arrojados da Itália da segunda metade do século XX: a “Milano Due”, um enorme bairro de classe média-alta, anjos setenta, situado a leste de Milão e com uma população de seis mil pessoas, que gozavam de um paraíso à beira da capital financeira do país. Enriqueceu. Voltou-se para a televisão e fundou a “Mediaset”, cujos canais foram crescendo até terem uma audiência superior às três emissões da RAI, a televisão pública italiana. É aqui que ele entra na corrida para primeiro-ministro, com um discurso populista e a desancar nos comunistas, de quem vinham todos os males do mundo.
Não sei como é hoje mas, naquele tempo, a RAI e a política tinham relações esquisitas. Decidira-se que a coordenação da RAI 1 seria da responsabilidade do governo em funções. A RAI 2 seria sempre de linha de direita e a RAI 3 da linha da esquerda. Neste complexo e intrincado esquema vão aparecer também os três grandes canais da Mediaset (Italia 1, Rete 4 e Canale 5), com maior audiência do que a RAI. É preciso dizer que a linha editorial destes três canais tinha para com Berlusconi a mesma estúpida reverência que a FOX News virá a ter por Trump.
Pelo meio, o que o tornou mais conhecido aos olhos do mundo, sobretudo desportivo: a compra do A C Milan, que levou o clube à sua época dourada, com cinco ligas dos Campeões no palmarés. Adoravam-no.
Berlusconi, vulgo “Il Cavaliere”, ganhou as eleições de 1994 à frente da “Forza Italia”, conluiado com os extremistas de “Lega Nord”, que queriam dividir a Itália em duas. O papel das televisões foi absoluto. Com cinco dos seis grandes canais do seu lado, Berlusconi espalhou o perfume populista por toda a Itália, com promessas mastodônticas e uma ética muito duvidosa. Tal como Trump, Berlusconi passou por entre os pingos da chuva da justiça, escapando a escândalos de corrupção e de sexo, onde se destacavam as orgias na sua casa de Arcore, pontuadas com meninas de menoridade representando escravas sexuais.
Quando parti segunda vez para viver em Itália, em 2001, Berlusconi era primeiro-ministro também pela segunda vez. O caos universal gerado pelos atentados do 11 de Setembro atingia também a Itália. Para Berlusconi tudo parecia uma festa. Lembro-me de uma altura em que a FIAT quase declarou falência, com a bolsa de Milão a entrar em derrapagem e ninguém sabia, no meio do pânico, onde estava o primeiro-ministro. Berlusconi estava na Suíça, a fazer “face-lifting”. Quando chegou, a Itália em pantanas, manifestou-se sorridente, com aquela máscara artificial que nunca mais o deixaria, ridícula até ao cabelo, mancha negra a substituir a já conhecida calva.
Não acompanhei de perto os últimos anos da sua vida política. Foi-se apagando, entre escândalos de pequena dimensão e aquele sorriso de máscara artificial.
Nunca me senti muito confortável ao saber que um bilionário dos negócios se meteu na política: deixar de comprar coisas para comprar pessoas é uma tentação avassaladora, sobretudo quando se tem a sensação de que se pode tudo, que se está acima da lei.
Foi um protótipo. Não deixa saudades.
*Este texto foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.