Não cansem mais o Povo

 

Foto: Igreja Açores / José Cabral16

Pelo Padre José Júlio Rocha

Naqueles idos de novembro de 1992 tive mesmo de comprar um computador. Estava em Roma, a iniciar os meus estudos e tornava-se urgente a necessidade desse instrumento. Fui, com um amigo, a uma loja da especialidade e apresentaram-me um “Toshiba 285”, antepenúltimo grito da moda, portátil, dois milhões de liras… o que, em português, dava uns 200 contos, mil euros. E era relativamente barato naquele tempo. O dono da loja declarou então – sem propor nada – que, no fundo, aquele computador custava, livre de impostos, 160 contos. “Fica por 180: ganhas 20, eu ganho 20 e não se pagam os impostos”. Fiquei abananado com a facilidade normalíssima com que ele me impunha uma falcatrua mas, do alto dos meus 24 anos e a falar mal italiano, acabei por anuir. Descobri o que é viver na Itália.

Aqui em Portugal as coisas, se bem que menos graves, andam também por esses caminhos. Somos um país que vive paredes meias com a pequena corrupção. Desde a galinha que se ofereceu a quem livrou o filho da tropa a todas as acrobacias que se fazem para abater a carga dos impostos, em Portugal há de tudo. Ainda sou do tempo em que se ouvia falar de lavradores que acrescentavam água ao leite para vender mais, as balanças viciadas nas vendas, o vinho a martelo, os desvios de tijolos, cimento e areia… Com um jeitinho o filho consegue um bom emprego sem passar pelo concurso e ao irmão do cunhado paga-se um bom jantar, que ele arranjou uma solução grátis para a TV Cabo. É a casota da arrecadação que se fez sem passar pelas licenças da Câmara. Enfim, os amigos são para as ocasiões e quem tem padrinhos é que se batiza. O gasóleo agrícola também serve para dar uns passeios ao domingo e, cereja em cima do bolo, aqui na Terceira muito se roubou na Base com a consciência tranquila de quem sabe que roubar aos americanos não é pecado. E a história poderia continuar até quase ao infinito, a tal ponto de termos de dar a mão à palmatória e reconhecer que este País não é propriamente o paraíso dos puros de coração.

Ora, é desta massa que se formam os políticos. Eles são o retrato do nosso País. Por isso – sem me indignar com a corrupção – espanta-me muito menos o facto de existir corrupção nos governos do que o alarido e o escândalo e a extrema indignação e a revolta que a massa popular portuguesa hipocritamente alardeia. Ansiamos que a justiça seja mais célere, mas como é que a justiça pode funcionar em Portugal se está atravancada dos pés à cabeça com processos, processinhos e maxi-processos num País acostumado à pequena corrupção? É a pescadinha de rabo na boca.

Dito isto, tenho assistido, como português preocupado com o futuro do País, a alguns debates dos nossos líderes políticos para as eleições de março. O espetáculo tem sido triste. Não temos líderes, não temos gente capaz de governar este País, é a sensação incómoda que me atravessa. Aqui há dias um dos nossos líderes afirmava a pés juntos que era urgente consolidar o Serviço Nacional de Saúde e, quando o pivô lhe pediu para concretizar, ele disse apenas que não queria fazer como os outros e que era preciso salvar o SNS. “Mas como?” insistia o pivô, “Que medidas concretas?” E ele apenas a dizer que os outros fizeram mal e que eles iam fazer bem e mais nada… um angustiante vazio de ideias.

Aos políticos pede-se que tenham como lema fundamental o Bem Comum do País. Exige-se, por uma questão de ética, que se sentem à mesa e debatam ideias concretas, que pensem o País, que dialoguem, que juntem esforços, porque é o futuro de Portugal que está em causa. O que é que vemos? Autênticas touradas em direto em que dois terços daquela meia hora são destinados a acusações mútuas, a revirar o passado, a interromper o adversário a cada cinco segundos e a discutir palhaçadas ideológicas que nada interessam a Portugal. Nada de novo. É esta a grande traição dos nossos líderes: o Bem Comum do País está bem abaixo dos interesses partidários. Cereja no topo do bolo é assistir a um debate onde dois candidatos supostamente apresentam o seu plano para o País, isto durante meia hora, e depois levar com jornalistas e comentadores que, durante 50 horas, dão notas e debatem sobre quem ganhou o duelo… e é para isto que se faz a política.

Como açoriano, estou preocupado com o facto de as nossas eleições regionais de fevereiro terem sido um ótimo laboratório de experiências para as legislativas nacionais. Vieram cá quase todos os líderes fazer campanha, uns apoiando os líderes regionais dos seus partidos, outros fazendo o lugar deles, em nítida pré-campanha nacional e apenas importando o nosso resultado para a sua campanha. Seria temerário só imaginar que os partidos regionais estejam a receber ordens de cima quanto ao futuro dos Açores por causa das Legislativas nacionais e que ninguém veja nisso um atropelo à Autonomia.

Portugal está a celebrar 50 anos de democracia, apesar de haver bons corações saudosos dos 48 anos anteriores. Sim, é de democracia que temos de falar. Da sua riqueza e das suas fragilidades e das ameaças que a põem em causa neste primeiro quartel do século XXI. Entra pelos olhos dentro que a democracia está sob ameaça no mundo ocidental. Não é de caudilhos vociferantes que precisamos. As pessoas têm por hábito apaixonarem-se por oradores empolgantes, líderes carismáticos que prometem limpar o país dos corruptos e dos sujos. Quem sabe de cor o nome do primeiro ministro da Noruega? E da Suécia, da Dinamarca, da Finlândia, da Austrália, da Nova Zelândia? Aí as democracias funcionam e funcionam bem e os políticos não dão nas vistas. Não são as gargantas que fazem bons políticos, mas as mãos. Não são os discursos bonitos que fazem os grandes líderes. Olhem mais para o que eles fazem e menos para o que dizem. Um povo cansado de políticos é um perigo para a democracia. Não cansem mais o Povo.

*Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.

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