Na partida de Ratzinger

Por Monsenhor António Manuel Saldanha

Colaborador da Verdade foi o seu lema episcopal. A ânsia pela verdade é a síntese da sua vida e foi a estrada que percorreu como padre, como teólogo de excelência e finalmente como Sumo Pontífice.

Reconheceu as insuficiências e as contradições humanas da Igreja, mas ensinou a certeza de que esta realidade é o corpo místico de Cristo e como tal, a principal referência para todos os tempos.

Convicto que o grego que viu em sonhos o Apóstolo de Tarso era a Razão a pedir ajuda à Fé, Ratzinger apelou ao seu matrimónio vital. No seu magistério foi dito frequentemente que a Fé precisa da Razão para não se degradar em fanatismo ou em apoteose de ódio e que a Razão sem a luz da Fé, facilmente se torna um instrumento de desumanidade e o principal fundamento de uma cultura de morte, como a chamava São João Paulo II.

Sob tantos aspectos era um monge beneditino e um erudito. Talvez por isso auspiciou a aplicação da riquíssima reforma litúrgica nascida no Concílio Vaticano II e as suas homilias, discursos e conferências transpiram sabedoria própria de um verdadeiro Padre da Igreja. A sua bússola intelectual foram Santo Agostinho e São Boaventura, fazendo dele uma espécie de teólogo da continuidade. Recusava ruturas entre as diversas atualizações que cada Concilio traz consigo. Tal como São Paulo VI, que os viveu em primeira pessoa, Ratzinger era muito atento aos desvios ao magistério do Concílio Vaticano II, desvios que estavam nos antípodas do próprio Concílio e que considerava responsáveis por muitos problemas internos da vida da Igreja. Será ele o fundador da revista Communio que contará com as prestigiosas colaborações de Hans Urs Von Balthasar e Henri de Lubac, precisamente para difundir os textos conciliares tal como o pensaram e interpretaram os Padres do Concílio Vaticano II.

Académico por vocação, criou perplexidade a sua conferência proferida em Ratisbona sobre o Islão, que mais não pretendia que salientar a importância do diálogo entre as grandes religiões e alertar para o perigo da intolerância entre credos religiosos. Já o embargo de um grupo de alunos e professores na sede da Universidade La Sapientia, não só não feriu a  envergadura intelectual de Ratzinger, como foi a negação chocante da liberdade de expressão própria dos ambientes universitários desde praticamente a sua génese na Idade Média.

De uma seriedade intelectual absoluta, foi incansável no ensinar a pureza do Evangelho em tempos e em contextos complexos em que a Teologia, não raro por puro idealismo e mesmo com retas intenções, foi sacrificada a bandeira de grupos armados ou ficou refém de ideologias paganizantes ou ateístas.

Consciente de que não há verdadeira liberdade sem conhecimento científico e sem fé em Deus a iluminá-lo, o seu magistério ajudou a Igreja a atravessar autênticas florestas de ignorância e a abrir clareiras mesmo para os não crentes.

Foi o Papa da renúncia. O poder papal foi nele essencialmente serviço. Um cristão sabe despojar-se do poder, sem esperar que a morte o exija. Uma renúncia criativa, porque foi o primeiro que assumiu o nome de Papa emérito, desmistificando a instituição e abrindo assim com este gesto sem precedentes o mesmo exercício de  liberdade aos seus sucessores.

Uma profunda amizade uniu Ratzinger ao Papa Francisco que o recordou no Te Deum em São Pedro com saudade e gratidão pela sua extrema delicadeza humana.

Os próximos decénios nos darão oportunidade de redescobrir cada vez mais a grandeza de um homem essencialmente tímido, que uniu uma inteligência genial à fé própria dos Santos.

Que descanse em Paz na eternidade, junto dos que mais amou nesta vida. Como era aliás o seu expresso desejo.

 

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