Pelo padre José Júlio Rocha
Aqui há cerca de um mês fiz uma conferência, junto com a doutora Faranaz Keshavjee, sobre a tolerância e o diálogo inter-religioso entre o cristianismo e o islão. A doutora Faranaz pertence à comunidade ismaelita de Portugal, onde, aliás, vive o seu líder, Aga Khan. Os ismaelitas são uma fação xiita do islão que se notabiliza pela tolerância e pelo diálogo, não raro perseguida por outras fações muçulmanas.
A base da conferência coincidia no facto de, por sermos povos religiosos, que acreditam no mesmo Deus, é muito mais o que nos une, nos fundamentos, do que o que nos separa: entre muçulmanos e cristãos há que criar plataformas de diálogo que sejam exemplo dentro destas religiões para que encetemos caminhos de concórdia e de paz. Eu acredito nisso. Há muitos cristãos e muçulmanos de boa vontade que estão dispostos a trilhar esse caminho.
Infelizmente o mal é muito mais visível do que o bem. Os nossos noticiários tendem a apresentar o lado negro dos acontecimentos e é isto que nós queremos ver. Costumo dizer que, para construir uma casa, são necessários meses de trabalho, com arquitetos, engenheiros, pedreiros, carpinteiros, decoradores, etc. Para a destruir, basta uma bomba. Num jogo de futebol, 50 mil pessoas aplaudem um belo espetáculo. Se, dessas 50 mil pessoas, dez começarem a atirar petardos para o campo, o jogo fica sujo por causa desses dez e torna-se notícia. Para construir uma pessoa são necessários anos e anos de amor e dedicação. Para a destruir, às vezes basta uma palavra. O mal é muito mais eficiente do que o bem, o caos do que o cosmos, o ódio do que o amor. Mas, no entanto, há muito mais bem do que mal, por invisível que seja.
As recentes notícias sobre a decapitação de um professor em França por ter mostrado caricaturas de Maomé e o assassinato terrorista de três pessoas dentro da basílica de Nossa Senhora da Assunção em Nice vêm reacender o medo em relação ao terrorismo islâmico na Europa e fazer soar os alarmes, outra vez, a respeito da intolerância islâmica e da secular tolerância europeia que, segundo muitos, é a boca do peixe pela qual a Europa vai morrer. Ninguém pode ficar indiferente perante os atentados terroristas no seu país, ao pé da sua casa, dentro das suas igrejas.
A França, que dentro das suas portas já alberga quase 10% de muçulmanos, está agora, outra vez, no epicentro da contenda. Tudo por causa do julgamento dos assassinos que, há uns anos atrás, mataram alguns jornalistas do Charlie Hebdo. Não gosto desse pasquim satírico e corrosivo, que, mais do que fazer rir, ofende pessoas e comunidades sem nenhuma perspetiva construtiva, com caricaturas que, por exemplo, apresentam as três Pessoas da Santíssima Trindade a sodomizarem-se à brava. Gostava que fechassem as portas, que fossem à falência, que ninguém comprasse o jornal e isto nada tem a ver com a minha posição, bastante favorável à liberdade de imprensa. Posso recorrer à justiça, manifestar-me publicamente, ridicularizar o Charlie. Não posso matar. O Charlie, por mais corrosivo que seja, mora num país de tradição democrática e tolerante. Quem quer viver num país desses tem que respeitar as suas leis. Mas a tolerância democrática às vezes é um calcanhar de Aquiles. E quando a tradição de tolerância democrática enfrenta bestas como Erdogan, chefe de Estado da Turquia, que apelou ao boicote dos produtos franceses, quase abençoando o terrorismo islâmico, o que pode essa tolerância fazer? Pagar com a mesma moeda vai levar a uma escalada de violência sem fim à vista. Calar e baixar a cabeça é dar azo a que a intolerância social e religiosa aumente e faça mais vítimas. Estamos numa camisa-de-forças?
Acresce que o terrorismo usa a tática mais difícil da guerra: a guerrilha. E é quase impossível vencer uma guerrilha. Lembremos só a atitude da América no Vietname, que lançava napalm em massa sobre as florestas e aldeias, matando milhares de inocentes, e acabou por perder a guerra.
Não é expulsando os muçulmanos da Europa que vamos ter paz nem fechando as portas indiscriminadamente aos refugiados que procuram o pão e a paz que não encontraram na sua terra. Não é tendo uma atitude hostil ao islão em geral. Há que haver uma concertação europeia a larga escala, com informações precisas, de modo a atacar e erradicar cirurgicamente o radicalismo islâmico da Europa e de qualquer parte do mundo. O mal não é o islão: é o radicalismo.
Não esqueçamos que o mundo ocidental está pagar uma fatura cara pelo colonialismo social e económico com que destruiu a paz no Magrebe e no Médio Oriente; pela ganância da exploração do petróleo; pela forma como tem gerido o conflito israelo-árabe, destruindo, aos poucos, o povo palestiniano; pela guerra absurda contra o Iraque que gerou um monstro chamado Estado Islâmico.
Não tenho medo da perspetiva alarmista de uma Europa islamizada. Tenho medo de uma Europa decadente dos valores morais que, no passado, ajudaram a construí-la.
A pergunta fundamental será então: como é que o bem destrói o mal sem usar o mal?
*Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira do jornal Diário Insular, na rúbrica Rua do Palácio