Pelo padre José Júlio Rocha
Lisboa continua a ser a vaidosa alfacinha que quer casar com Paris, apesar de Paris estar mais interessada em Londres, Washington, Moscovo… e Marselha. Ruas ensolaradas, ar seco de cortar a pele, que já não chove. Em Portugal já não é hábito chover, talvez por razão das alterações climáticas, que atiraram a chuva para uma zona do Atlântico onde habitamos nós, os açorianos. Só uma noite daquelas diluvianas, típicas de cá, era suficiente para encher as barragens que estão lá a 20, 30%.
Passeio entre a Baixa e o Saldanha, à procura de livrarias, a Buchholz, a Ferin, alguns raros alfarrabistas que vão morrendo, a Almedina, a Bertrand. Já não se leem livros, à exceção de romances parvoides de capa a tender para o cor-de-rosa, volumes inteiros de auto-ajuda, daqueles que ajudam mais os que os escrevem do que os que os leem, qualquer coisa técnica para os técnicos e livros de Lisboa para os turistas mais curiosos. Escreve-se muita porcaria, lê-se porcaria ainda mais porca. Os livros que se vendem são a melhor sondagem sobre a estatura literária de um país. E, digamos a verdade, nesse campo, Portugal é pouco melhor do que uma desgraça completa.
Pela hora do almoço, mais coisa, menos coisa, encontro-me perto do Saldanha, à volta daqueles edifícios marmóreos, o Saldanha Residence, o Atrium Saldanha e outros, onde pontuam escritórios de advogados, corretores, bancos, Lisboa no seu melhor, com empregos de alta performance.
É às portas de entrada desses inúmeros e presunçosos escritórios que vemos uma classe de humanos muito comum nas cidades mas que, em Lisboa, abundam em exagero. São jovens entre os vinte e tal e os quarenta, licenciados, a ganhar um salário bem acima da média. Quase todos estão a fumar, mas ninguém fuma cigarros clássicos, que isso é fatela, nem cigarros eletrónicos, que isso é híper fatela. Sim. É tabaco aquecido, a moda, que não deixa catarro, não encharca a boca e a roupa com aquele odor de cinzeiro, não incomoda os outros, satisfaz o quanto baste. É a moda e, para esta classe de jovens já estranhamente acaçapados no viver, a moda vale tanto quanto a essência da vida. Eles impreterivelmente bem vestidos, com casacos a meia perna, torneando bem o abdómen cultivado, impecável. Quase sempre é azul o casaco, às vezes castanho claro, a condizer com os sapatos que brilham como espelhos, castanhos também eles, alguns pontilhados à moda inglesa. Calças azuis escuras e ponto final, a apertarem junto aos tornozelos. Esses jovens – a que alguém chamou “yuppies”, uma alcunha inglesa que quer dizer “Young Urban Professional” – são uma casta única. Elas também usam calça, corpos impecáveis, cabelos escorridos, brilhantes, até aos ombros, gestos delicodoces e precisos. Nunca ninguém os vê fazer algum gesto que se pareça com parolice. Ser parolo, em Lisboa, é ser parvo. E passar por parvo é a última coisa que um yuppie deseja. Passo por entre eles, que se amontoam a conversar na pausa do trabalho. Oiço uma voz masculinamente efeminada a dizer que tinha ido ao Porto no último fim-de-semana e o achou “montes de giro”, com um “giro” não “giro”, mas “gíroo”. A arte do yuppie é controlar o stresse. Porque o seu trabalho é árduo, avassalador, precisam mostrar obra feita, personalidade resiliente e decisiva diante dos superiores, subir a pulso na carreira, conquistar lugares, pessoas, mundos. Não desprezam ninguém, são institucionalmente respeitadores. E, no entanto, essa espécie de vazio feito de trejeitos e aparências, roupas infinitamente apropriadas, conversas profundamente supérfluas, firmeza nas suas competências e nulidade naquilo que não é a sua arte, leva-me a pensar se não serão, bem lá no fundo, tão pobres como os sem-abrigo que dormem nos vãos das portas onde eles fumam os seus não pensativos cigarros de tabaco aquecido.
Rebolo-me nas livrarias. Já me doem as pernas e os ombros, com dois sacos de livros nas mãos, à procura de mais um, só mais um, aquele livro que não sei mas que há tempos ando à procura. Não o encontro e, no entanto, já comprei mais três ou quatro e faço contas às finanças para não ficar seco como as barragens de Portugal. Saio cansado e a noite já vem batendo à porta. Na rua fria, de um frio seco que corta as faces, já não encontro os yuppies que povoam o dia de Lisboa. Agora habita uma fauna muito diferente, que já não fuma tabaco aquecido às portas dos grandes escritórios, já não veste Prada ou embraça Louis Vuitton, já não usa sapatos castanhos pontilhados à inglesa. É a massa enorme dos distribuidores de comida ao domicílio, parados às portas de certos restaurantes, à espera da próxima missiva. São, em grande parte, “monhés”, bengalis, nepaleses, gente que veio do outro lado da existência à procura de alguma dignidade e de pão para apaziguar a fome da família. Falam línguas estranhas, às vezes português estranho ou brasileiro esquisito. Andam em motoretas, bicicletas, trotinetes elétricas, zarpando pelas pimpantes ciclovias de Lisboa. A pandemia fez disparar essa profissão. Mochila às costas, aceleram os veículos Lisboa afora, à procura da morada que colocaram no GPS do telemóvel, porque os pobres também precisam de telemóveis com GPS, não só os yuppies, para, no fim, acabarem com uns tostões no bolso, longe do salário mínimo, mas mesmo assim melhor do que nos seus países de fome, guerra e ditadura.
Foi um dos inenarráveis taxistas de Lisboa que se queixou desses “monhés” que nos tiram o trabalho e sujam a cidade. Com um taxista de Lisboa nunca se discute. De contrário, ele cala-se e perdemos o prazer de uma conversa alucinante. Sendo o Primeiro-ministro “monhé”, profetiza o taxista, manda vir os “monhés” tirar o nosso pão. Lógico.
Aqueles estranhos indivíduos de pele escura, que nos olham com a humildade de quem está a mais, não se queixam do nada que ganham nem fazem barulho pelo facto de se estatelarem nos ofícios que os portugueses não querem. Os sapatos castanhos, pontilhados à inglesa, devem valer um ou dois salários desses distribuidores ao domicílio, sem contar com as malas Louis Vuitton ou os casacos Prada. Nunca vi nenhum taxista de Lisboa queixar-se desses sapatos, dessas malas, desses casacos.
Mas já ouvi um falar mal dos padres. Muito me ri por dentro!
*Este artigo foi publicado esta sexta-feira no jornal Diário insular, na rubrica Rua do Palácio.