Por Eduardo Ferraz da Rosa (*)
Na minha Conferência de 2006 sobre a obra Introdução ao Cristianismo de Joseph Ratzinger – referida na primeira parte deste artigo –, depois de anotar e comentar o conteúdo dos respectivos “Prefácios” às reedições de 2000 e de 1969, e à primeira edição (de 1967), todos constantes da publicação (Lisboa, Principia, 2005) que então apresentámos em Angra do Heroísmo, depois do acompanhamento das esclarecedoras, sugestivas e interdisciplinares perspectivas da “Introdução”, e assim antes de fazer incidir a exposição e a análise individualizada a todas as fórmulas, formulações, realidades e categorias religiosas e teológicas do Credo ou Declaração da Fé (também chamado “Símbolo Apostólico”) – tratadas nas 1.ª, 2.ª e 3.ª Partes Centrais do livro (sobre Deus, Cristo, o Espírito e a Igreja), e nesta última especialmente sobre o fundamental, complexo mas importante parágrafo 2 do capítulo II, cujo tema havíamos estudado, mais crítica e aprofundadamente, por relação à problemática conjunta e articulada entre a Antropologia Filosófica e a Escatologia propriamente dita (aliás motivo de grande e natural atenção por parte de Ratzinger, que lhe dedicaria não só uma outra e inteira obra autónoma e sistemática, como havia assinado, a par de Rahner e Schmitt, os verbetes sobre aquele complexo assunto na Sacramentum Mundi, sob a direcção do primeiro daqueles seus colegas teólogos).
Postas assim as coisas, tratou-se de expor e debater as múltiplas questões sobre as quais a Introdução ao Cristianismo se debruçava, nomeadamente, como recordo, a situação actual da Fé em Deus e em Cristo; os conceitos do Divino e a dimensão Mística; a crise da Teodiceia após Auschwitz; o Logos, a Criação e a Cristologia, enfim, as dificuldades hodiernas do discurso crente e do próprio estatuto dos teólogos (quando não dos filósofos e do homem comum…), nos inseguros terrenos da Fé, do “poder aflitivo da incredulidade presente” dentro da própria vontade de crer e dos limites “da compreensão moderna da realidade” (alicerçada, segundo Ratzinger, após o declínio da Escolástica, nas guinadas da subjectividade cartesiana e da razão kantiana, do historicismo e do cientismo materialista, até ao contemporâneo pensamento técnico).
– Ora foi também a este propósito que Ratzinger recorreu à famosa parábola profética do clown circense de Kierkegaard, tantas vezes retomada por outros (de Harvey Cox a Leonardo Boff) perante os sucessivos incêndios societários e ecológicos nas insensatas cidades e campos dos homens, que só a alienação desavisada das massas, dos rebanhos e (também!) dos seus “pastores” (entre eles os de uma clerezia envergonhada e mal formada, tão zurzida pelo autor…), foi capaz de acolher, rindo e sofrendo nas suas próprias tendas, templos e areópagos.
Perante este decadente e deprimido quadro sócio-religioso, individual e institucional, mental e moral (um “oceano de incertezas”) , desenha o futuro Papa Bento XVI as grandes sendas alternativas para uma autêntica e profunda reafirmação da Fé, assente na (re)conversão, na consciência dialógica aberta a uma esfera da realidade que acolhe e segue um “anseio de absoluto” que está inscrito na dinâmica estrutura fundamental, antropológica e metafísica do próprio sujeito, ou seja, como ele escreve, na consciência espiritual incarnada, isto é, na existência humana.
O teólogo de Introdução ao Cristianismo é também um humanista culto, bastante versado nas Humanidades, nas Artes e nas Letras, sendo inúmeras as suas bem evidentes vivências e domínio da Música – veja-se, por exemplo, não só as suas clássicas preferências musicais quanto a sua notável reflexão (declaradamente herdeira e seguidora de Guardini) sobre a Antropologia da Imagem Sacra, a Arte Religiosa, a Teologia Litúrgica, o Canto e a Prece, enfim, sobre a própria “lírica eclesial”.
– Autor de uma muito vasta obra, bem reveladora da sua Cultura e da amplitude do seu Pensamento, tanto nos tratados ou ensaios académicos quanto na discursividade dialogante das suas sempre esclarecedoras e conhecidas Entrevistas, nas Alocuções e Catequeses, no seu conhecimento da Patrística (Padres e Doutores da Igreja), com destaque para os seus dilectos S. Boaventura (cuja Teologia da História estudou a fundo) e S. Agostinho (cuja dimensão existencial lhe foi sempre decisiva), e bem assim nas suas Encíclicas, Joseph Ratzinger foi na verdade um marco intelectual superior na galeria dos Papas.
Sendo verdade que nem toda a sua obra teológica e pastoral, e a sua acção doutrinal receberam apoio ou congratulação unânime na Igreja e fora dela – especialmente pelo seu papel, determinações e orientações concretas como Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, nem por isso se lhe pode fazer acusação de incoerência, intransigência conceptual absoluta ou incompetência de fundamentação argumentativa, mesmo nos pronunciamentos mais controversos…
Uma palavra final quero deixar hoje no que se refere mais concretamente, apesar da grande qualidade das suas obras teológicas, quer à actuação de Ratzinger como Prefeito da Fé e como Papa, quer às alegadas omissões a propósito dos escândalos de pedofilia na Igreja, insistentemente agitados hoje, porquanto, uns e outros recorrentemente repisados, nalguns casos o foram e são com menor ou temerário juízo de acusação estratégica, sem provas (que sempre devem ser apuradas para merecida repressão, castigo e penas; e noutros, o foram e são com evidente desconhecimento de causa e matéria textual, quando não de ignorância, leviandade, ou mera incompetência disciplinar. E depois, no domínio duplamente ilícito e pecaminoso dos provados abusos sexuais, como poderia crer-se que encobriria factos e crimes ignóbeis e escandalosos desse jaez, quem, tanto civilmente e “considerando a gravidade dessas culpas e a resposta muitas vezes inadequada que lhes foi reservada da parte das autoridades eclesiásticas”, sobre eles e elas escreveu, por exemplo, a “Carta Pastoral aos Católicos da Irlanda”!?
– Escrevo e termino este texto na véspera do funeral e última despedida de Joseph Ratzinger/Bento XVI, relendo e retendo uma parte do seu Testamento, aí constatando novamente a coerência do seu Pensamento Teológico, Filosófico e Ético, condicente com a nobreza Espiritual da sua Alma e do seu Coração:
“A todos aqueles que de algum modo tenha cometido um erro, peço perdão de coração.
“Aquilo que antes disse aos meus compatriotas, o digo agora a todos aqueles que na Igreja foram confiados ao meu serviço: permanecei firmes na fé! Não vos deixeis confundir! Com frequência, parece que a ciência – as ciências naturais de um lado e a pesquisa histórica (em particular a exegese da Sagrada Escritura) de outro — seja capaz de oferecer resultados irrefutáveis em contraste com a fé católica. Vi as transformações das ciências naturais desde tempos remotos e pude constatar como, ao contrário, tenham desaparecido aparentes certezas contra a fé, demonstrando-se ser não ciência, mas interpretações filosóficas somente aparentemente incumbentes à ciência; assim como, por outro lado, é no diálogo com as ciências naturais que também a fé aprendeu a compreender melhor o limite do alcance de suas afirmações e, portanto, a sua especificidade. São pelo menos 60 anos que acompanho o caminho da Teologia, em especial das Ciências Bíblicas, e com o subseguir-se das várias gerações vi ruir teses que pareciam inabaláveis, demonstrando-se serem simples hipóteses: a geração liberal (Harnack, Jülicher etc.), a geração existencialista (Bultmann, etc.), a geração marxista. Vi e vejo como do emaranhado das hipóteses tenha emergido e emerja novamente a razoabilidade da fé. Jesus Cristo é realmente o caminho, a verdade e a vida — e a Igreja, com todas as suas insuficiências, é realmente o Seu corpo.
“Por fim, peço humildemente: rezem por mim assim que o Senhor, não obstante todos os meus pecados e insuficiências, me acolher”.
(*) Professor Universitário. Este texto foi publicado também na edição desta quinta-feira dos jornais Diário Insular e Correio dos Açores e é o terceiro e último de uma série de três. Pode ler o primeiro e o segundo aqui, no sítio Igreja Açores.