Por Eduardo Ferraz da Rosa (*)
No nosso país, entre os vários autores e estudiosos da obra de Joseph Ratzinger – muitos deles ligados à nossa Universidade Católica, com livros ou ensaios publicados em Revistas de especialidade (como a Didaskalia), cuja investigação académica e o decorrente conhecimento da obra do Papa Bento XVI mais se cultivou, afirmou e ajudou a divulgar –, conta-se o teólogo Doutor Henrique de Noronha Galvão (1937-2017), antigo professor da Faculdade de Teologia da UCP, a quem fiz referência na primeira parte deste texto.
Todavia – como ali vinha dizendo – ainda na sequência da pontual indicação de influências universitárias, proximidades intelectuais cristãs e até de ligações pessoais ao magistério teológico, filosófico e cultural do Professor Ratzinger, cardeal e futuro Papa Bento XVI, e querendo relevar esses e outros pormenores e acontecimentos, de certo modo confluentes nesse domínio histórico-intelectual e espiritual, que, embora já à distância de alguns anos, configurou a vida e a obra do Papa Emérito agora falecido, – julgo valer a pena salientar o que (em 2017, data da morte do Padre Noronha Galvão), escrevia Tolentino de Mendonça, ao situar sociologicamente, com intencional desenho de paralelismos, certos contextos vividos em Portugal e na Europa, num registo do quadro socio-religioso e intelectual que vou reproduzir e que sinaliza uma exemplar e quase análoga situação de crise, permanentes e paradigmáticas perguntas, ligadas e uma familiar procura de respostas por parte de toda uma anterior geração, mas ainda também existencialmente viva e activa na mais autêntica e dramática reflexão prática da nossa própria temporalidade e dos seus sinais:
– “A história está cheia de surpresas assim. O momento dramático em que uma geração de católicos de primeira linha se declara “vencida” [Tolentino refere-se claramente a Bénard e Alçada e à geração de “O Tempo e o Modo”, tal como poderíamos relembrar aqui e ali a poética de Ruy Belo…], e ensaia uma dissidência do espaço eclesial, [que] servirá inesperadamente a um jovem padre português para construir um percurso de invulgar consistência no interior da teologia. A pergunta pertinente é esta: pode, ao mesmo tempo, e sem atraiçoar nenhum dos campos, ser-se um leitor atento de António Alçada Baptista ou João Bénard da Costa e ser um discípulo fidelíssimo de Joseph Ratzinger? Henrique Noronha Galvão mostra que sim, quando no final dos anos 60 é enviado pelo cardeal Cerejeira para finalizar os estudos na Alemanha (…). Foi então que um amigo alemão lhe falou da obra notável de um professor de Tubinga, intitulada Introdução ao Cristianismo e que é certamente um dos textos emblemáticos da teologia contemporânea. (…) A leitura desse livro convenceu-o: não só abordava com vertiginosa clareza as questões que o preocupavam, como manifestava uma rara abertura a outras culturas, que não apenas à germânica”, aduzindo achegas e metodologias de Dante, Camus, Gabriel Marcel, Greimas e Roland Barthes, Heidegger e Gadamer, para trabalhar “o tópico do conhecimento de Deus nesse existencialista abissal que foi Agostinho de Hipona”, numa circularidade temática e metodológica que teria, como teve, de merecer a adesão de Ratzinger, não fosse ele um outro apaixonado pelo autor das Confissões.
Por outro lado, já anteriormente, a Didaskalia havia dedicado ao Prof. Henrique Galvão uma integral edição jubilatória na qual, pelo seu então director, Peter Stilwell, foi justamente salientado o seu decisivo contributo para a exigente e renovada evolução gradual da Faculdade de Teologia da UCP “como instância formadora dos quadros superiores da Igreja Católica para a sua missão de diálogo de nível universitário com outras áreas de saber”, tanto mais quanto ele fora “um dos protagonistas da reintrodução da reflexão teológica no mundo universitário português”, para a qual muito contribuira uma “longa experiência em universidades alemãs, durante o período de preparação do seu doutoramento, e a colaboração próxima com docentes como o Prof. Joseph Ratzinger, seu orientador”.
– Porém, voltando mais especificamente ao livro Introdução ao Cristianismo, importará dizer que o mesmo foi originalmente publicado em 1967, como texto adaptado das prelecções universitárias proferidas por Ratzinger em Tubinga, quando, segundo ele adiantou logo (e reiteraria em 2000), dificilmente teria havido outro momento em que “a questão do conteúdo e do sentido autêntico da fé cristã estivesse envolta numa névoa de incertezas tão densa”, pelo que, com aquela abordagem aos credos do Cristianismo e à Igreja Católica, queria “ajudar a compreender de uma nova maneira a fé como possibilidade de uma verdadeira existência humana no mundo de hoje, interpretando-a sem a transformar num mero palavreado que tenha dificuldade em esconder um vazio espiritual completo”!
Ora, deste ponto de vista, de entre todas as muitas e conjugadas obras e títulos do próprio teólogo Joseph Ratzinger e/ou do (mesmo) Papa Bento XVI, talvez que a Introdução ao Cristianismo (embora pensada em 1967, na efervescência dos primeiros anos pós-Concílio Vaticano II) continue a ser uma das mais relevantes abordagens àquilo a que ele chamou uma paradigmática aceleração da história universal, marcada, de modo cultural, espiritual e socialmente dramático, pelos seguintes desafios:
– Em 1968, pela “rebelião de uma nova geração que não só julgou insuficiente, cheia de injustiças, de egoísmo e de avareza a obra de reconstrução do pós-guerra, como considerou errado e fracassado todo o percurso da história a partir da vitória do cristianismo”, tentando depois edificar, “finalmente”, um mundo novo de igualdade, liberdade e justiça, a partir de um outro caminho-meta “encontrado na grande corrente do pensamento marxista”; de seguida, em 1989, ao verificar-se uma derrocada dos regimes comunistas na Europa, a “triste herança de uma terra arrasada e de almas destroçadas”, os relatos dos gulags e o esquecimento de vozes como as de Soljenitsin, sem que o Cristianismo conseguisse apresentar-se como “alternativa memorável”.
Desse modo, aquelas duas e co-implicadas conjugações histórico-temporais teriam gerado, ou reflectido, díspares e confluentes roteiros para futuros baseados ora numa ética pseudo-salvadora ora numa visão cientifista do mundo, com regimes sangrentos e de terror, redutoras teologias “de libertação”, eucaristias revolucionárias, retrocessos a pragmatismos imorais, cepticismo e irracionalidades, paraísos artificiais e comércios da mais abjecta exploração dos seres humanos e da natureza, com um pós-moderno relativismo religioso, a par de um “retorno do religioso” pelo lado de uma amálgama de crenças e crendices, ou de uma indistinta “mística natural”, sem autêntico contacto com o Divino.
– Porém, aquela conjuntura de temas críticos e problemáticas filosóficas, sociopolíticas, culturais, psico-comportamentais, morais e religiosas dos anos de 60 e 70 (comparável à de um novo eixo civilizacional em pleno coração do Século XX), também pode ser vista assim como “uma espécie de divisor de águas simbólico, posteriormente mitificado ou depreciado”, “não tanto pelos abalos que ele também criou no tecido eclesial, mas sim por um dado editorial surpreendente (…), naquele restrito arco de tempo, aparecendo [assim] uma sequência de textos teológicos que permaneceram – embora com gradações e níveis diferentes – como pilares indicadores de um processo que, depois, se ramificaria ainda mais em várias direções inéditas”, como resumiu Gianfranco Ravasi, a partir das leituras dessa obra de Ratzinger – “um ditado límpido e marcado por piscadelas culturais variadas”, identificando “alguns nós estruturais do cristianismo” –, tal como também presentes nas teses ou potenciados nos trabalhos de outros teólogos católicos e protestantes (Fuchs, Metz e Mary Daly), em filósofos de heterodoxa proveniência marxista (como Bloch), ou expresso no célebre diálogo europeu de 2004 com Habermas sobre a Secularização, o Poder do Estado e a Democracia, a Liberdade, a Justiça e a Comunicação, realidades e instâncias que deveriam permanecer, todas elas, subordinadas aos supremos valores da Verdade e da Ética.
(*) Professor Universitário. Este texto foi publicado também na edição desta quarta-feira dos jornais Diário Insular e Correio dos Açores e é o segundo de uma série de três. O terceiro será publicado esta quinta-feira, dia 5, dia do funeral de Bento XVI.