Por Eduardo Ferraz da Rosa (*)
Pedido que me foi um depoimento, em forma de memória e evocação, sobre os legados intelectuais, doutrinais e religiosos do Papa Bento XVI e o pensamento do mesmo teólogo Joseph Ratzinger (16.04.1927–31.12.2022), lembrando-me a atenção e o estudo que prestei à sua obra, abordada numa Conferência sobre o seu pensamento teológico e filosófico, em especial sobre o seu importante livro Introdução ao Cristianismo.
O tema da referida Conferência – intitulada Filosofia, Ciência e Teologia: Cristianismo e Fé em Joseph Ratzinger – cujo conteúdo retomarei aqui para iniciar o presente e sucinto testemunho, escrito ainda sob a primeira triste notícia do falecimento do Papa Emérito, teve efectivamente lugar em Angra do Heroísmo e foi proferida em 2006, durante um Simpósio local cujo Painel de Debate coordenei no âmbito de um programa municipal sobre “Cultura, Arte e Ciência”.
– Recordo também que o meu empenhamento pessoal e a minha intervenção institucional na promoção desse evento foram, na altura, mais proximamente motivados pelo lançamento da republicação portuguesa (Editorial Principia) da citada obra (Introdução ao Cristianismo) de Ratzinger, acontecimento que havia sido organizado em Lisboa, na nossa Universidade Católica Portuguesa, durante o encerramento da Exposição Bibliográfica “Cristo e a Nova Evangelização” (2006), em colaboração com a Faculdade de Teologia da UCP.
Aquela apresentação do livro fora proporcionada pelo Prof. Henrique de Noronha Galvão (1937-2017), membro da Comissão Teológica Internacional e antigo aluno de Ratzinger (que o havia orientado no doutoramento em Teologia Dogmática, sobre “O conhecimento existencial de Deus em Santo Agostinho. Uma leitura hermenêutica das Confissões”), na Universidade de Regensburg (Ratisbona), aliás também famosa por ter sido depois o local de uma controvertida (e parcialmente incompreendida) conferência de Ratzinger sobre a Razão e a Fé, proferida a 13 de Setembro de 2006.
– Essa Conferência de Ratzinger (“Fé, Razão e Universidade: Memórias e Reflexões”), filosófica, histórica e teologicamente brilhante e muito pertinente, gerou um bem mediatizado “repúdio” e demais reacções de reprovação e discórdia temática por parte de vários meios e sectores confessionais, merecendo, ainda hoje, ser relida e reavaliada, porque tem relevância para os actuais diálogos e confrontos religiosos, civilizacionais e doutrinários entre o Ocidente, o Cristianismo e outras Religiões perante as várias facções político-ideológicas, expansionistas e bélicas do Islão, a par de uma reflexão sobre Ciência, Moral, Educação e Ensino, tendo sido de tal dimensão o gerado impacto daquele discurso do Papa Bento XVI que o mesmo entendeu, por conseguinte, afirmar ter “esperança em que, depois das reacções do primeiro momento, as minhas palavras na Universidade de Regensburg possam constituir um estímulo e um encorajamento para um diálogo positivo, também autocrítico, quer entre as religiões quer entre a razão moderna e a fé dos cristãos”.
E o antigo académico, acabou mesmo, na sua Audiência Geral, em Roma, sete dias passados, a 20 de Setembro de 2006, por recapitular a disputada questão, nestes termos: – Uma experiência particularmente bela (…) foi para mim poder pronunciar um discurso perante um grande auditório de professores e de estudantes da Universidade de Regensburg, onde durante muitos anos fui professor. Pude encontrar-me com alegria mais uma vez com o mundo universitário que, durante um longo período da minha vida, foi a minha pátria espiritual. Como tema tinha escolhido a questão da relação entre fé e razão. Para introduzir o auditório na dramaticidade e na actualidade do tema, citei algumas palavras de um diálogo cristão-islâmico do século XIV, com as quais o interlocutor cristão, o imperador bizantino Manuel II Paleólogo, de maneira para nós incompreensivelmente brusca, apresentou ao interlocutor islâmico o problema da relação entre religião e violência. Esta citação, infelizmente, pôde prestar-se a ser equivocada. Mas, ao leitor atento do meu texto, é claro que eu não pretendi de modo algum fazer minhas as palavras negativas pronunciadas pelo imperador medieval neste diálogo e que o seu conteúdo polémico não expressava a minha convicção pessoal. A minha intenção era muito diferente: partindo de quanto Manuel II diz sucessivamente de modo positivo, com uma palavra muito bela, sobre a racionalidade que deve guiar na transmissão da fé, eu quis explicar que não é a religião e a violência que caminham juntas, mas sim, religião e razão. O tema da minha conferência respondendo à missão da Universidade foi portanto a relação entre fé e razão: pretendia convidar ao diálogo da fé cristã com o mundo moderno e ao diálogo de todas as culturas e religiões”.
Ora o conteúdo daquela Conferência, bastante próximo do travejamento teorético (filosófico e teológico) dos capítulos centrais da Introdução ao Cristianismo, estava (e continua a estar) em rigorosa afinidade essencial com o teor de todas as suas obras, ensinamentos doutrinais e categorias hermenêuticas, exegéticas e eclesiológicas, apesar dos também conhecidos (apesar de bem diferentes) afastamentos teológicos, dogmáticos, cristológicos, institucionais, eclesiásticos, jurídico-canónicos e pastorais, que ora o aproximaram ora o distanciaram de outros teólogos de nomeada (Rahner, Lubac, Congar, Chenu, Moltmann e mesmo Balthasar…), e/ou de bem diferentes, diferenciados e diferenciáveis modelos e posicionamentos teológico-filosóficos, alguns deles visados e censurados (como Schilleeckx, Boff, Gutiérrez, Sobrino, Haring, Küng, Haight, Curran), cuja proficiente análise rigorosa, detalhada e comparativa, não podendo desenvolver neste espaço, deixo para posterior ensejo.
– Por outro lado, nesta ocasião valerá a pena retomar outras facetas da obra e do magistério de Joseph Ratzinger no que se refere a algumas ligações a Portugal (e não só àquelas por estes dias tão renoticiadas viagens e mediáticas visitas suas, em repisadas manchetes de espectáculo televisivo, ou de parada necrológica em revista, jornalismo rotineiro ou redes sociais mais ou menos lamuriosas, quando não apenas futilmente opinativas ou agressivas), porém antes e agora sobre mais profundas influências ou ecos do pensamento teológico de Joseph Ratzinger nas nossas academias, centros de estudos de Teologia e de Filosofia, ou então nas suas envolvências pastorais e eclesiais em questões de Mariologia (como, enquanto Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, no seu “Comentário Teológico”, o fez em sede de uma decisiva Antropologia Cultural e Devocional, com uma sólida Hermenêutica das Aparições de Fátima e das correspondentes, complexas e díspares problemáticas críticas (psico-fenomenológicas, epistemológicas, devocionais e proféticas das Revelações e das Visões públicas e privadas, etc.) também ali manifestas e indeclinavelmente integrantes das vivências populares, imaginárias, intelectuais e espirituais da Tradição e do Cristianismo histórico.
(*) Professor Universitário. Este texto foi publicado na edição desta terça-feira dos jornais Diário Insular e Correio dos Açores e é o primeiro de uma série de três. O segundo será publicado amanhã, também aqui no Sítio Igreja Açores.