Pelo Pe. Teodoro Medeiros
Homenagens do cinema a si mesmo? “Cada um o seu cinema”, por exemplo, recolheu 33 curtos episódios de 3 minutos, feitos por vários realizadores, para comemorar os 60 anos do festival de Cannes. Os resultados são diversos, entre o curioso, a homenagem e o pungente (Iñárritu nesta última categoria): a verdade é que as obras coletivas de homenagem são sempre de interesse limitado.
O que nos deixa então com as longas-metragens: “8½” de Fellini, “Stardust Memories” de Woody Allen, “Avé César” dos irmãos Coen, “Sacanas sem Lei” do Tarantino ou “O Desprezo” de Godard são alguns dos exemplos. E o caso mais famoso é mesmo europeu: o “Cinema Paraíso” de Tornatore, uma dramatização daquela inocência que o cinema substitui à que fez perder. Estão todos entre o bom e o excelente.
Resta ainda “A Invenção de Hugo”, de um realizador que em novo queria ser padre, Martin Scorcese. O filme é de 2011 e chegar a ele apenas agora não é razão de louvor, antes fenómeno que se prende com os delirantes “travellings” que o trailer do filme apresentava. Acresce ter-se dito que o filme se dirigia às crianças, que tinha de ser visto em 3D e até que abusava dos efeitos visuais de computador (CGI).
Nada disso é particularmente falso, mesmo se a classificação no nosso país é “para maiores de 12 anos”. E, depois de fazer a experiência (em 2D), a conclusão é que essas afirmações devem ser reduzidas a uma qualquer forma do dito “valem aquilo que valem”. Até porque também se dizia tratar-se de uma declaração de amor ao cinema.
O problema era ninguém explicar que a declaração não tem nada de artificial ou estético: a segunda parte do filme adentra-se mesmo sem contenção nas origens da sétima arte. Qual vítima perante uma baleia que abre a boca para o sugar sem resistência, o espetador vê-se envolvido numa viagem ternurenta ao que que se pode chamar o princípio do universo.
Percebe-se por que razão Scorcese abraçou o projeto, uma adaptação do livro de Brian Selznick, “A Invenção de Hugo Cabret” (ele próprio parente do famoso produtor americano David O. Selznick). A obra original contém texto e maravilhosas ilustrações, muitas delas reproduzidas no filme de forma fidelíssima: torna-se difícil não intuir um larguíssimo sorriso do realizador na montagem desta secção do filme (ponto final aos superlativos!).
O título bem poderia ser “O Sonho de Méliès”, porque disso se trata: houve uma altura em que a máquina de filmar já fora inventada mas estava ainda tudo por fazer, tudo por aprender. Os irmãos Lumière deram à luz a criança mas quem ficou noites sem dormir à beira do berço foi Méliès. Os Lumière achavam inclusive que o cinematógrafo não tinha futuro e puseram-no de parte em 1905.
A criação de um estúdio em vidro para poder filmar com boa luz; todos os adereços artesanais que hoje só se verão num desfile de Carnaval; os efeitos especiais que se resumem a cortar e recolar a fita de celuloide; o pintar à mão de cada imagem que havia de aparecer na
tela… ideias de um homem que começou a carreira como mágico (e assim continuou, devemos concluir).
Assim apareceram atividades fundamentais como a montagem e a direção: se em Lyon criou-se o aparelho de filmar (os Lumière), em Paris criou-se a arte de contar estórias com o entusiasmo das crianças e a competência dos mestres. Méliès inventou os efeitos especiais quando fez desaparecer uma personagem no filme “Escamotage d’une dame chez Robert-Houdin” (pode ser visto no YouTube e dura pouco mais de 1 minuto): uma simples pausa na câmara de filmar criou o efeito.
O seu filme mais famoso é “Viagem à Lua” que foi um grande sucesso internacional. Nos Estados Unidos a pirataria do filme levou o realizador a criar ali uma sucursal da sua companhia, a Manufacture de Films pour Cinématographes. Estabelecendo-se como distribuidor, Méliès institui-se também como pioneiro no combate à contrafação.
“Viagem à Lua” inaugurou o género ficção científica e a imagem da nave espacial, em forma de bala, espetada no olho da lua passou a fazer parte do imaginário coletivo de todos nós. A expedição à lua parece ter sido inspirada em Júlio Verne e H. G. Wells: os astrónomos defrontam os habitantes da lua (convenientemente chamados selenitas), conseguindo finalmente fugir para casa (onde “aterram” no oceano).
Todos sabemos que o cinema era então mudo e que no início nem as vinhetas explicativas existiam. Menos conhecido é o facto de Méliès promover explicações sobre os filmes durante as projeções. Ou que este faz-tudo terá mesmo pedido a criação de uma composição musical que servisse de banda sonora a “Viagem à Lua”.
Scorcese narra os dados mais relevantes da biografia mas deixa de lado a morte do seu personagem principal (Méliès rouba claramente o protagonismo a Hugo). Ou o terrível período de quase pobreza e alienação durante a grande guerra. Apoiado pelos admiradores do seu cinema, teve mesmo uma justa reabilitação a partir dos anos 20. Pouco tempo antes de morrer, disse aos seus amigos: “Laugh, my friends. Laugh with me, laugh for me, because I dream your dreams.”
“A Invenção de Hugo” deveria ser um filme de visão obrigatória nas escolas: uma iniciação comovente à alma do cinema, capaz de educar para o poder das imagens e das narrativas ao mesmo tempo. Pela purificação que propõe, é uma espécie de Batismo de fogo: a experiência de uma arte que nas suas origens não é busca de lucro nem máquina de superestrelas sobrevalorizadas.
O engenho, a dedicação e o sacrifício de George Méliès são, ao mesmo tempo, a matéria e a metáfora da criatividade. Mais do que isso, são esventramento do que é estar vivo deixa-nos mais perto das estrelas.