Pelo Padre José Júlio Rocha
Já lá vão quase três mil anos desde que o rei Salomão, filho de David, morreu. À sua morte, Israel dividiu-se em dois estados: o Reino de Judá ao sul, com capital em Jerusalém, e o Reino de Israel a norte, compreendendo o que, ao tempo de Jesus, era a Galileia e a Samaria. Jeroboão (um daqueles nomes bíblicos que não queremos dar aos nossos filhos) tomou a coroa do Reino de Israel e nele, segundo conta a Bíblia, espalhou a infidelidade a Deus e a injustiça entre o povo.
É nesse tempo e nesse reino que aparecem dois profetas. O profeta Amós veio do sul, do Reino de Judá, onde era um pobre pastor que cultivava sicómoros. O Senhor chamou-o para ir ao Reino do Norte profetizar contra as injustiças, crimes e infidelidades do rei e do povo. O outro era Amacias, profeta de Betel, que vivia sumptuosamente no palácio de Jeroboão e profetizava apenas aquilo que o rei queria ouvir. Os dois profetas encontram-se e Amacias manda Amós profetizar para a sua terra ao que este responde que está apenas a fazer o que Deus lhe mandou.
Amós é um dos protótipos bíblicos do verdadeiro profeta: fala em nome de Deus; vive uma vida de acordo com o que prega; está disposto a dar a vida por aquilo em que acredita; não tem medo de denunciar as injustiças dos poderosos. Amacias, pelo contrário, representa os falsos profetas: falam em nome dos reis e dos poderosos; vivem uma vida de abundância nas cortes e nos palácios; não há correspondência entre aquilo que pregam e o que vivem; não denunciam as injustiças dos poderosos porque são parte da própria estrutura injusta que os alimenta.
Este conceito de falsos profetas ainda hoje é uma tremenda realidade em todas as religiões, especialmente as monoteístas. O que menos falta é “profetas” vendidos a este mundo, que mal acreditam naquilo que anunciam, funcionários de Deus, para quem o bem-estar e as riquezas são bem mais importantes do que a missão que lhes foi confiada e que não cumprem. A tentação da profecia falsa está bem presente num mundo para o qual o bem-estar, as riquezas e o poder têm o significado de felicidade. Noutras palavras, é bem mais difícil ser verdadeiro profeta hoje do que nos tempos de Jeroboão.
De todos os altos representantes da fé, há um que, ultimamente, me vem atazanando o juízo e que, não sendo da minha confissão religiosa, não deixa de fazer parte da minha religião. Não é que, na Igreja Católica, não existam falsos profetas suficientes para encher uma enciclopédia, mas, neste caso, está a dar mesmo nas vistas.
Trata-se de Kirill I (Cirilo I), patriarca da Rússia, ou “das Rússias”, como ele gosta de se apelidar. Atualmente é um dos maiores aliados de Vladimir Putin e da sua sanha expansionista.
Kirill é uma figura polémica na Igreja Ortodoxa russa: foi acusado de pertencer ao KGB numa altura em que a Igreja era perseguida na União Soviética e, mais tarde, já nos anos 90, enriqueceu com a concessão, pelo governo à Igreja Ortodoxa russa, da exclusividade do negócio de tabaco estrangeiro. Há quem avalie a fortuna pessoal de Kirill em 4 mil milhões de euros. Bem que ele tem tentado esconder essa opulência, como no caso de uma fotografia que o representava a assinar, numa mesa, um documento, onde foi retirado do seu pulso, em “fotoshop”, o relógio. Mas esqueceram-se de o retirar do reflexo do tampo da mesa: era um “Breguet” de quase 40 mil euros. Gato escondido com o rabo de fora.
Pior do que tudo isso é a posição subserviente do patriarca em relação a Putin que, qual maquiavel elevado à quinta potência, não olha a meios nem a ditames morais para consolidar o poder. Putin não é desses “liderzinhos” ocidentais que governam amordaçados por essa coisa de direitos humanos ou estados democráticos de direito, pela separação entre estado e religião ou por coisas fatelas como o Bem Comum. Para Putin só importa a Rússia, a sua segurança e o seu histórico imperialismo: é um trunfo ter Kirill nas suas mãos sujas.
E o patriarca russo encontrou a mais extraordinária de todas as explicações para se colocar ao lado de Putin na invasão à Ucrânia: preservar a Ucrânia das “falsas liberdades do Ocidente”, da corrupção dos valores, verdadeira ameaça contra os dois países irmãos. O mote foi a convocação de uma marcha do “orgulho gay” na Ucrânia, que não se realizou. “Por fraqueza, estupidez, ignorância e falta de vontade, muitos caem no pecado” e, por isso, Kirill apela aos fiéis para ficarem do lado certo da história e “nunca serem tolerantes com quem viola as leis de Deus.”
Sejamos, pois, claros: para Kirill o grande crime da humanidade é o desregramento dos valores no Ocidente, sobretudo no que diz respeito à sexualidade, aquilo que – vá lá – é o tal mastodôntico elefante na loja de porcelanas da moralidade das religiões. Sobretudo, como vimos, a hedionda homossexualidade que corrompe as almas e as leva ao inferno.
Então é assim: para preservar a Ucrânia da homossexualidade, dos LGBT e de outros crimes quejandos, vale a pena agredir um país inocente, destruir a sua economia, arrasar as suas cidades, matar as suas crianças, expulsar os seus velhos e mulheres, bombardear hospitais, escolas, teatros e igrejas, espalhar a guerra, o sangue, a destruição e a morte.
Se tudo isto é para se manter nas boas graças de Putin, como mais um oligarca protegido, estamos diante de um magnífico falso profeta.
Se tudo isto é por convicção, Deus nos acuda!
*Este texto foi publicado esta sexta-feira, no Diário Insular, na coluna Rua do Palácio