Pelo padre José Júlio Rocha
“A linguagem é uma fonte de mal-entendidos”, diz a raposa ao Principezinho de Saint-Exupéry. Já Nietzsche, numa antecipação premonitória da pós-modernidade, dizia que “não existem factos, existem interpretações”. A questão da linguagem e da comunicação foi sempre um dilema que perturbou a filosofia ao longo da sua história. O existencialismo do século XX tem duas vertentes essenciais: a ateia e a cristã. A primeira define o homem essencialmente como incomunicável, uma mónada enclausurada na sua própria solidão. “Os outros são o inferno” definia Sartre, paladino dessa corrente. O pensamento existencial cristão de Buber, Marcel, Lèvinas, Ricoeur, define o homem como “palavra”, relação: a essência do homem é ser para o Outro.
Este dilema quase eterno do pensamento está estampado também na própria Bíblia, em alegorias e histórias que, para além da própria teologia, podem iluminar a saga humana. No capítulo 11 do livro do Génesis, o primeiro da Bíblia, é narrada a história da Torre de Babel. O orgulho e a ambição dos homens cresceu de tal modo que decidiram construir uma torre que chegasse ao céu. Destronar Deus é ser deus. Naquele tempo, conta a alegoria bíblica, os homens falavam a mesma língua. Entendiam-se. Mas o orgulho, a arrogância e a ambição destruíram esse entendimento, a Torre ficou a meio, cada um foi para seu lado e essa dispersão deu origem a muitas línguas diferentes, metáfora bíblica da incompreensão. É impossível não ver na Torre de Babel um figura de estilo universal: a aventura do homem pelo caminho da sua própria deificação, que destrói qualquer tipo de encontro, entendimento, consenso ou diálogo, e é causa de todo o mal que o homem semeia no mundo. Olhemos para o exemplo mágico dos nossos parlamentos, discussões políticas, desportivas, relações entre países: não falamos todos a mesma língua. A balbúrdia de um mundo onde ninguém se compreende é a origem de todos os males morais.
O remédio para a Torre de Babel encontra-se no último livro histórico da Bíblia: os Atos dos Apóstolos, mais precisamente no episódio do dia de Pentecostes, capítulo 2. Estão em Jerusalém “Partos, medos, elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egipto e das regiões da Líbia cirenaica, colonos de Roma, judeus e prosélitos, cretenses e árabes”. Cada um, na sequência alegórica da Torre de Babel, fala a sua língua, continuam a não se entender. E, no entanto, escutam, atónitos, os apóstolos falarem a sua língua. Todos entendem a linguagem daqueles homens transidos pelo Espírito. Babel foi encerrada, começa uma nova era para a humanidade. A linguagem do Amor, ao contrário da do orgulho, é entendida por todos os homens. Foi restaurada a Paz.
Esta mensagem bíblica é eloquente e devia ser levada a sério não só pelos que leem a Sagrada Escritura mas por todos os homens. A Paz e a harmonia universais só serão possíveis quando todos falarem a mesma língua, quando a humanidade compreender finalmente que está condenada a entender-se para não se destruir para sempre. Esta pandemia trouxe-nos, vivas, as palavras do Papa Francisco: “estamos todos no mesmo barco”. A universalidade do “vírus democrático” devia unir-nos a todos e levar-nos a pensar num Bem Comum universal. Fui dos que tiveram esperança de que tivéssemos aprendido alguma coisa com isto. Infelizmente, os que mandam nisto tudo estão disposto a fazer tudo igual, e ainda mais depressa e pior, se é possível.
O Bodo, que celebraríamos no próximo Domingo, era, na minha infância, a festa mais bela e esperada de toda a ilha Terceira. Perdeu quase toda a sua pujança em detrimento de festas mais comerciais e ameaça morrer, com todos os seus valores, em virtude do desinteresse dos indígenas, mais entusiasmados com “halloweens” e quejandas palhaçadas.
No Bodo vivia-se uma fraternidade, igualdade e liberdade que não eram possíveis noutros dias. Nobres e pobres bebiam vinho da mesma vasilha ou até do mesmo copo, comiam do mesmo pão, rezavam ao mesmo Espírito Santo, coroavam da mesma coroa, celebravam a mesma esmola e cantavam o mesmo louvor, numa celebração que nunca deixou de ter o seu quê de subversivo e perturbador para a própria Igreja e para a sociedade em geral. O Imperador sem exércitos, sem política, sem dinheiro e sem influência social era exaltado acima de todos aqueles poderes, porque o Espírito Santo sopra onde quer e subverte os poderes instalados. Força dos fracos, pão dos pobres, advogado dos humildes, o Espírito Santo “inspirava” a uma linguagem universal de amor que suplantaria toda a arrogância com que o homem envenenara o mundo.
Ao perdermos esta celebração estamos a perder o caminho da esperança, a tornar-nos mortos-vivos, sem ideais nem sonhos, a deixar nas mãos dos perversos o nosso próprio destino.
Parecemos pássaros encerrados numa gaiola, mas com o cadeado por dentro e com as chaves não mão. E preferimos dormir.
*Este texto foi publicado no Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio