Má sorte ter nascido em Gaza

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Por Carmo Rodeia

Na bênção final, nos trabalhos da manhã do dia 12 de outubro da Assembleia do Sínodo, em Roma, o Patriarca dos Caldeus no Iraque, S.B. Louis Raphaël Sako, pediu a Deus que toda a humanidade “forme uma só família, sem violência, sem guerras sem sentido, e num espírito fraterno, viva em paz e harmonia”.

Este domingo, o Papa na oração do Angelus, lembrou que era preciso garantir o Direito Humanitário e pediu uma libertação imediata dos reféns feitos pelo Hamas no brutal ataque do passado dia 7. Como sempre, o Papa não se colocou do lado de ninguém a não ser das vítimas. Sem olhar ao credo, à cor da pele, à língua, ao passaporte mas apenas à sua condição humana.

As atenções do mundo estão, inevitavelmente, centradas no Médio Oriente. E não podia deixar de ser. O que se passou no dia 7 de outubro não foi apenas o capítulo mais recente de sete décadas de guerra e conflito entre israelitas e palestinianos, que envolveu potências externas e desestabilizou o Médio Oriente. O que aconteceu foi devastador: um grupo terrorista, saído de uma cisão da Fatah, outro grupo terrorista, que na calada da noite resolveu mostrar que estava vivo (e bem vivo) e era capaz de furar todo o sistema de segurança do Estado mais seguro do mundo e resolveu fazer uma matança junto de uma festa de jovens, disparando sobre tudo o que mexia e o que não conseguiu matar levou consigo como refém. Vingança e mais vingança. Outra vez vingança, como todas as vinganças que resultam da incapacidade de diálogo entre povos, no caso desde 1948, quando foram definidas a régua e esquadro as fronteiras do Estado de Israel, enxotando para o lado o povo palestiniano a quem já foi reconhecido também o direito à autodeterminação mas sem o direito consagrado à existência de um estado. Desde então, as vontades opõem-se: de um lado a vontade de Israel, que quer garantir a sua segurança numa região que há muito tempo considera hostil, e as aspirações legítimas do povo palestiniano de ter um Estado próprio. Esta é a questão de fundo, parece-me.

Não sei o suficiente sobre o conflito para ajuizar com propriedade sobre este enorme barril de pólvora, que se move por uma ideologia religiosa (e não por uma religião!). Uma ideologia marcada pelo extremismo, pela ortodoxia e pela intolerância, valores tão humanos, como se só houvesse uma saída: para que um lado exista o outro tem de desaparecer. E neste jogo de extermínio, umas vezes jogado pelo argumento da segurança; outras vezes pelo argumento da vingança, travestida de exercício legítimo à auto-defesa ou direito à auto-determinação, morreram na última semana cerca de 4 mil pessoas: 2600 do lado palestiniano e 1400 do lado israelita. E muitas mais hão de morrer, nesta guerra que já matou setenta vezes mais do que isto.

Tenho, desde miúda, um verdadeiro fascínio pelo Médio Oriente. É coisa de família, julgo eu. A minha viagem de sonho, de há muito, era alimentada pelo desejo romântico de atravessar o Médio Oriente de carro, em família, sem relógio e apenas com uma grande curiosidade pela Terra Prometida. Infelizmente não conheço Israel nem a Palestina nem nenhum dos países que serve de colo aos grupos mais radicais, a norte e a sul de Israel. Tenho muita curiosidade de ir até à Jordânia, ao Líbano, conhecer o Irão e naturalmente percorrer a terra de Jesus. Também não tenho amigos judeus nem muçulmanos nos meus contactos mais próximos. O pouco que sei é de histórias que ouvi contar e do que leio, e sempre me fascinou, se calhar de uma forma muito revolucionária e até infantil.

Hoje de manhã, liguei o rádio no carro e a primeira notícia que ouvi foi um relato do enviado da TSF a Israel que dava conta das manobras a norte de Gaza para retirar os palestinianos que têm nacionalidade norte americana, e que outros países se preparavam da mesma forma para proceder à saída dos seus concidadãos. Fiquei perplexa porque no fim de semana a história da notícia, com que fui matraqueada de manhã à noite, era outra: mais de um milhão de palestinianos tinha aceite a ordem de fuga de Israel e tinha partido para o sul de Gaza, como foi sugerido, mas estavam a ser bombardeados e chegados ao sul esbarravam numa fronteira que o Egipto não queria abrir por receio de ter nesta massa humana elementos do Hamas, que integra a Irmandade Muçulmana, que se opõe ao regime do Cairo. Aliás,  nem a ajuda humanitária tinha permissão para passar. Estes palestinianos, na sua maioria nascidos e criados em Gaza, sem possibilidade de saírem de Gaza estão condenados a morrer em Gaza. Porquê? Porque tiveram a má sorte de lá nascer. É a real politique dirão alguns…

A guerra é uma loucura e todos os que vivem dela são criminosos. Não há argumentos que refutem esta ideia. Mesmo que as razões sejam o direito à autodefesa ou a luta sem tréguas contra o terrorismo. Nunca se constrói a paz contra ninguém.

Ninguém pode dizer que uma guerra é justificada. João Paulo II, por exemplo, admitiu a possibilidade de intervenção humanitária no caso da guerra na Bósnia como apoio para a legítima defesa daqueles que não puderam se defender. O conceito é: eu  empresto as minhas armas, a minha força militar, porque quem deveria defender-se não tem força para fazê-lo. Mas nunca existem guerras justas. Sobretudo quando alguém ocupa militarmente uma cidade e a reação do ocupado é bombardear outras cinco ou quando os critérios da proporcionalidade estão objetivamente postos em causa.

Conseguiremos formar uma “ só família, sem violência, sem guerras sem sentido, e num espírito fraterno, viva em paz e harmonia”? Já era difícil acreditar nisso, mas agora está a ser mesmo impossível. Não porque não acreditemos em Deus mas porque alguns de nós invocam-O à sua maneira. Sobretudo quando a ordem é para matar.

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