“Una Magnifica giornata d’estate, soleggiata e ventilata, e Lisbona sfavillava.” Esta é a segunda frase do livro onde Antonio Tabucchi enfatiza a Lisboa dos anos trinta. “Sostiene Pereira” (Afirma Pereira) diz no título, e esta frase refere-se ao verão de 1938, um dia de sol e brisa, e Lisboa “sfavillava”. Gosto desse termo, que adivinha algo incómodo, como a dizer que Lisboa brilhava e ardia ao mesmo tempo.
Encontrei-me com um amigo nas Amoreiras. “Queres revisitar a Lisboa real?” “Vamos a isso” e arrependi-me, mais tarde, desse “vamos a isso”. Lisboa “sfavillava” na tórrida vaga de calor. Era o dia trinta de junho deste ano. O percurso incluía passar por Campo de Ourique, descer à Estrela, contornar São Bento, ameaçar o Bairro Alto, dizer adeus ao Chiado, derrapar pela rua do Alecrim, arregalar os olhos para a 24 de Julho, passar pelo Cais do Sodré, arrepiar caminho pelas margens do Tejo até ao Parque das Nações e derivar para o destino, o aeroporto que me traria de volta aos Açores.
Já não conheço esta Lisboa. O trânsito a passo de caracol, inquinando o ar e os pulmões, parava, parava, avançava alguns metros, parava. As ruas estavam sujas, beatas, papéis, porcarias. Quem conheceu a Lisboa limpa e briosa de há vinte, trinta anos atrás, emparvece agora. Um casal de estrangeiros com cabelos estranhos e roupas infinitamente mais estranhas discutem de mãos dadas. Dois velhos, absolutamente velhos, desesperam, um com uma bengala, outra a servir de bengala ao que tem bengala, para atravessar uma rua onde a calçada mais parece um caminho de cabras. Carros apitam atrás e à frente. Motoretas ziguezagueiam por entre os carros desesperadamente engarrafados. Mais à frente há uma briga. Um louro, com cara de sueco – porque quase todos os louros são parecidos com os suecos – dispara uns socos na cara de um negro e este responde com um gancho nos queixos do louro. A briga pára (pára, não para). Os carros não andam.
Os exteriores dos cafés fervilham de gente nova, esmagadoramente turistas, que inundam as ruas com uma vaga de línguas e culturas abstrusamente diversas. Há gente com pressa. Penso que todos os que não são turistas estão com pressa; e os turistas atrasam e desesperam os que estão com pressa; e os que estão com pressa afrontam o prazer que os turistas querem disfrutar. Ninguém se entente. Caos. É essa a palavra.
Já quase não há lisboetas em Lisboa. Os preços das casas, a subida das taxas de juro, a péssima mobilidade e mais uma miríade de razões estão oferecendo a capital portuguesa aos ricos e aos turistas. Ou aos imigrantes nepaleses, indianos, bengalis, africanos, brasileiros, que esgotam, dia-a-dia, a sua vida por um tostão, para já não falar das mansardas velhas de antigas estalagens, velhos edifícios, em cujas janelas assomam rostos de escravos, a dormir e a comer uns em cima dos outros, numa das maiores vergonhas de que nos podemos envergonhar.
Lisboa é, como muitas outras cidades, uma porta-voz dos últimos caminhos da civilização ocidental. Jovens yuppies e vazios competem com ferocidade não sei por quê. Jovens que não são yuppies nem vazios sentem o vazio de não ter futuro, numa sociedade que lhes vende uma espécie de felicidade em pacotinhos de satisfação imediata, mas não lhes dá emprego, dignidade, razões para lutar e motivos para mudar. Mudar o quê? Só para uma nova geração de telemóveis ou um maior desafio da inteligência artificial que, aliás, já vai conduzindo muitos destinos de muita gente.
Grande parte destes jovens, que deambulam, com pressa ou sem ela, pela cidade nunca tiveram Deus no horizonte da sua vida. Deus é uma ideia, razoavelmente desnecessária, e a fé uma condição de vida que já fez o seu tempo e perdeu o prazo de validade quando as pessoas começarem a pensar pelas suas cabeças. Não há ateus como antigamente, que quem já nasce onde não há Deus concentra uma nova espécie de ateísmo, aquele da maior indiferença: Deus não incomoda, é uma realidade indiferente, não há nada para rezar ao Nada.
E sim, o Nada. Esse vazio existencial que se reflete nas prioridades de uma civilização cruelmente farta de um lado, cruelmente faminta de outro, esse vazio existencial reflete-se sobretudo nos jovens, a geração do futuro a quem não se deu futuro nenhum, a não ser o drama da emergência climática que lhes enegrece o futuro, as políticas extremadas e cada vez mais pateticamente estúpidas, que adivinham futuros sombrios para uma paz que se preze.
Lisboa “sfavillava” naquele trinta de junho brilhante e ardente, Lisboa linda, luz e Fernando Pessoa, luz e Amália Rodrigues, luz e aquele tuk-tuk que me aborrece, atravessado no cruzamento, nem para trás nem para diante, apitos e palavrões para quem apita, uma jovem chora, absolutamente só, com um top e o umbigo à mostra, piercing farto no nariz, encostada à ombreira de uma das portas mais velhas e tristes de Lisboa. Como é difícil o amor…
É esta Lisboa “sfavillante” que, dentro de um mês, receberá eventualmente mais de um milhão de jovens oriundos das quatro partidas do mundo. Jovens católicos. Que têm eles de diferente dos outros jovens? “Já reparaste?”, disse-me um daqueles amigos ateus que, às vezes, devem ser ouvidos. «Já reparaste? Os jovens católicos são os que menos pensam. Pelo menos a maior parte. Os grupos de jovens cantam coisas bonitas e não passa disso. São uns burguesinhos acomodados que perdem a fé quando vão para a universidade. Já viste se todos os jovens católicos se unissem por uma causa, ambiental, de justiça, de solidariedade, vá lá, que lutassem por uma causa. E o que vês é essa apatia alegre, esses jovens todos de bem, que cantam coisas parvas e acreditam vagamente num Deus a quem não rezam.»
E eu, pois claro, fiquei pensativo… e se todos os jovens católicos se apaixonassem, lutassem por uma causa, esse milhão, muitos mais milhões em milhões de lugares.
O que é que uma Jornada Mundial da Juventude, na “sfavillante” Lisboa, vai fazer por isso? O Papa Francisco sabe-o bem. A Igreja portuguesa, na particular situação em que se encontra, tem que encontrar forças, seja onde for, para apaixonar um milhão de jovens por uma causa. Ou não seja esta mais uma jornada da juventude.
(Este artigo foi publicado esta segunda-feira na Agência Ecclesia, na rubrica Dorsal Atlântica)