São mais que muitos os comentários sobre os acontecimentos quentes.
Mais que quentes, muitos são escaldantes e intrometem-se em todos os recantos, sentimentos, raivas e afetos da vida. Despertam desejos escondidos de participar, exprimir e por vezes excitar a opinião pública onde cada um lança a sua sentença como se fora a última palavra, antes mesmo de o acontecimento ser inteiramente claro. Por isso muitas vezes os comentários quase se antecipam aos factos. Acontece no campo civil, militar, desportivo, religioso, triunfal, humilhante, de glória ou revolta. É nessa explosão que a sociedade, inundada de informação, sacode a rotina e intervém, a seu nível, no café, nos transportes, no trabalho, no grupo familiar e de amigos. Sobem exclamações, brados, surpresas no choque com o impensável.
É a emoção que cobre o acontecimento com manto denso que parece sufocar a existência e pensar que o mundo anda em vésperas de fim ou tem de começar de novo. Até que outro acontecimento ocupe o seu lugar e manche a cinco colunas a primeira página do nosso quotidiano. Depois, depois é o tempo que abate a poeira, levanta os véus, oferece novos contornos e finalmente oferece oportunidades à reflexão serena, aproximação da verdade, para que esta espreite sobre as primeiras impressões e nos diga afinal o que se passou e o que significa. Isto acontece sobretudo quando andamos nervosos à procura da caixa negra de qualquer episódio que parecia impossível de acontecer. Mas aconteceu. Talvez nesta penumbra ande inscrita uma pequena parábola que afinal é a chave da história do mundo, inclusive a da salvação.
Lembro-me, em França, quando por lá passei na década de oitenta, que havia um jornal que se considerava quase impossível de existir: o Le Canard Enchainé, protótipo da irreverência, do sensacionalismo e das notícias tabu, mas símbolo manifesto da liberdade de expressão, apesar de muitos discordarem da forma como narrava alguns factos. O massacre aterrador executado no jornal satírico Charlie Hebdo, mesmo com algumas reservas sobre a forma como este abordava alguns temas, deixou o mundo boquiaberto, sem acreditar no que via e ouvia. Mas despertou um novo e unânime hino à liberdade que a Europa já há alguns anos não entoava com tanto vigor e convicção. E a afirmação destemida dos valores que constituem um património da humanidade. Daí a multiplicação dos gestos, das palavras, dos avisos, dos protestos e das manifestações. Uma nova letra para um velho hino. Em liberdade.
Foi também a liberdade o dom mais arriscado que Deus nos concedeu. Sem ela o mundo seria muito certinho, mas composto apenas de escravos.
P. António Rego