Legenda para um outono triste

Pelo padre José Júlio Rocha.

A que cheira o outono? Talvez a terra molhada, à caruma dos pinheiros no chão, às folhas lentas e desbotadas que se desprendem, dolentes, das árvores que lhes deram vida. Ao vento húmido do nordeste, que se apega aos vidros das janelas cortinadas. Ainda há seis meses cheirávamos a fragrância da faia do norte, que anunciava o renascer do ciclo da vida. Agora cheiramos a natureza, lenta e pacientemente, a morrer. A morte tem uma cor desbotada, amarelo-pálida, castanho-clara.

A primeira vez que entristeci foi no outono. Eu e o meu irmão à janela mais alta da casa dos avós, no nosso quarto de cama, a olhar por entre os vidros, noite já adiantada, as árvores do mato da nossa infância, fustigadas por um violento ciclone. O bramido do vento, grave e vasto, parecia vir do fundo da terra. O movimento fantasmagórico das árvores, que dançavam altivas e se dobravam à violência das rajadas, o som cavo dos troncos a retorcer e dos ramos a partir. No outro dia fomos ao mato. Várias árvores tinham cedido ao tempo, caídas sobre outras ou prostradas em terra, ramos espalhados pelo chão, coberto de folhas e gravetos. Entristeci os olhos e as mãos.

Foi no outono que parti para a escola, primeira semana de outubro de 1975, calção azul, pasta castanho-clara na mão direita, um lápis e uma sebenta lá dentro. Saí de casa sozinho e percorri, sempre debaixo de um vento húmido, os quinhentos metros que separavam a casa paterna da escola de cima. Os outros alunos chegavam todos acompanhados pelas mães. Alguns choravam quando os pais iam embora, um gritou agarrado à saia da mãe e, naquele dia, não ficou na escola connosco. As meninas sentaram-se à frente, os rapazes atrás, fiquei na última fila. Era pequeno e via o mundo sempre com os olhos meio arregalados e as sobrancelhas levantadas em arco, a olhar o universo dentro da sala de aula e a ouvir as primeiras palavras simpáticas da professora Teresa. Foi ela que me ensinou a ler e essa dádiva é impagável. Ao terceiro dia já era vítima daquilo a que hoje chamam “bulling”. Os rapazes mais velhos, dos anos acima, chegavam, punham-me a mim e ao José Henrique em frente um do outro, no meio de uma roda de gente, e obrigavam-nos a lutar sob a ameaça de nos baterem. Fingíamos ferir-nos um ao outro enquanto os madraços tomavam partido. O José Henrique era o meu melhor amigo na escola e eu era obrigado a bater-lhe e a levar dele. Fomos sempre amigos mas tínhamos de lutar. Talvez tenha sido aí que aprendi as primeiras noções do absurdo de todas as guerras: soldados que não se odeiam mas têm que se matar enquanto os senhores da guerra se odeiam mas não se matam. Era outono.

Foi também no outono que parti, sozinho, treze anos, na primeira viagem de avião, para o seminário em Ponta Delgada. A saudade não é um sentimento que pertença às crianças. As primeiras lágrimas de saudade caíram-me bem cedo e talvez isso me tenha ensinado que o outono é a estação de todas as saudades.

Véspera de outono, um céu cinzento e pardo faz pardas todas as coisas. O outono sabe sempre a partida sem regresso, a uma estação de caminho-de-ferro onde os comboios metálicos recebem as pessoas do cais e a menina ausente informa ao altifalante, com voz maviosa, a partida do próximo comboio para um lugar que fica sempre longe.

E, no entanto, todas as partidas são o princípio do regresso a casa. Todas as viagens são de chegada, por muito tempo que dure a chegada. Fernando Pessoa não concorda comigo, porque escreveu:

Partir!

Nunca voltarei.

Nunca voltarei porque nunca se volta.

O lugar a que se volta é outro,

a gare a que se volta é outra.

Já não está a mesma gente, nem a mesma luz, nem a mesma filosofia.

Partir, meu Deus, Partir! Tenho medo de partir…

Talvez Pessoa tenha escrito este fim de poema no outono.

*Este texto foi publicado na edição desta sexta feira do Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.
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