Francisco coloca combustíveis fósseis e «causas humanas» na origem destes problemas ambientais
O Papa propõe na sua nova encíclica Laudato si, apresentada hoje, uma mudança de fundo na relação da humanidade com o meio ambiente, alertando para as consequências já visíveis do aquecimento global e das alterações climáticas.
“As mudanças climáticas são um problema global com graves implicações ambientais, sociais, económicas, distributivas e políticas, constituindo atualmente um dos principais desafios para a humanidade”, escreve Francisco, que assina o primeiro documento do género inteiramente dedicado a questões ecológicas.
O texto fala numa “raiz humana” da crise ecológica, que o Papa diz ser possível superar, entre outras medidas, “substituindo os combustíveis fósseis e desenvolvendo fontes de energia renovável”.
Francisco considera que há “um consenso científico muito consistente” a respeito do “preocupante aquecimento do sistema climático”, acompanhado por um aumento do nível do mar, “sendo difícil não o relacionar ainda com o aumento de acontecimentos meteorológicos extremos”. Nesse sentido, o novo documento contesta um modelo de desenvolvimento baseado no “uso intensivo de combustíveis fósseis”, que está no centro do sistema energético mundial.
“A tecnologia baseada nos combustíveis fósseis – altamente poluentes, sobretudo o carvão mas também o petróleo e, em menor medida, o gás – deve ser substituída, progressivamente e sem demora”, apela.
O Papa argentino defende ainda a necessidade de uma redução de gases com efeito de estufa, o que “requer honestidade, coragem e responsabilidade, sobretudo dos países mais poderosos e mais poluentes”.
A encíclica admite que há outros fatores que contribuem para as alterações climáticas, mas recorre a conclusões de “numerosos estudos científicos” para sustentar que “a maior parte” do aquecimento global se deve “à alta concentração de gases com efeito de estufa”, emitidos sobretudo “por causa da atividade humana”.
“As previsões catastróficas já não se podem olhar com desprezo e ironia”, avisa Francisco, para quem o atual ritmo de “consumo, desperdício e alteração do meio ambiente” é insustentável e vai “desembocar em catástrofes”.
Face ao atual debate na comunidade científica e política, o Papa propõe que se siga o “princípio de precaução”, que permite a proteção dos mais fracos, com “poucos meios para se defender e fornecer provas irrefutáveis”.
A encíclica com 246 números, divididos em seis capítulos, fala da “relação íntima entre os pobres e a fragilidade do planeta” e lança várias críticas a um “novo paradigma e formas de poder que derivam da tecnologia”, desafiando a comunidade internacional a “procurar outras maneiras de entender a economia e o progresso”.
Francisco convida a reconhecer “o valor próprio de cada criatura”, o “sentido humano da ecologia”, e considera que face a temas tão complexos existe a necessidade de “debates sinceros e honestos”.
O Papa recorda “a grave responsabilidade da política internacional e local”, condenado o aborto e a “cultura do descarte”, num texto que apresenta a proposta dum “novo estilo de vida” para a humanidade.
“Se a tendência atual se mantiver, este século poderá ser testemunha de mudanças climáticas inauditas e duma destruição sem precedentes dos ecossistemas, com graves consequências para todos nós”, alerta.
Encíclica liga ecologia ambiental à ecologia humana
O Papa afirma , por outro lado, que a preocupação pelo meio ambiente tem de estar “unida ao amor sincero pelos seres humanos” e a um compromisso social.
“Quando, na própria realidade, não se reconhece a importância dum pobre, dum embrião humano, duma pessoa com deficiência – só para dar alguns exemplos –, dificilmente se saberá escutar os gritos da própria natureza. Tudo está interligado”, explica.
Segundo Francisco, “uma vez que tudo está relacionado”, também não é compatível a defesa da natureza com a apologia do aborto ou de “experiências com embriões humanos vivos”.
“Não parece viável um percurso educativo para acolher os seres frágeis que nos rodeiam e que, às vezes, são incómodos e inoportunos, quando não se dá proteção a um embrião humano ainda que a sua chegada seja causa de incómodos e dificuldades”, escreve, num documento que liga a ecologia ambiental à ecologia humana.
“A própria vida humana é um dom que deve ser protegido de várias formas de degradação”, pode ler-se.
O Papa insurge-se contra o que classifica como “esquizofrenia permanente” e “exaltação tecnocrática”, que não reconhece aos outros seres um valor próprio, chegando a “negar qualquer valor peculiar ao ser humano”.
“Pensando no bem comum, hoje precisamos imperiosamente que a política e a economia, em diálogo, se coloquem decididamente ao serviço da vida, especialmente da vida humana”, apela.
Francisco entende que “um sentimento de união íntima com os outros seres da natureza” só pode ser verdadeiro “se ao mesmo tempo não houver no coração ternura, compaixão e preocupação pelos seres humanos”.
O Papa critica a “a compra de órgãos dos pobres com a finalidade de os vender ou utilizar para experimentação” bem como “o descarte de crianças porque não correspondem aos desejos dos seus pais”.
A encíclica coloca a Igreja do lado contrário de quem acredita que o planeta está sobrepovoado ou defende um controlo populacional, criticando “pressões internacionais sobre os países em vias de desenvolvimento, que condicionam as ajudas económicas a determinadas políticas de ‘saúde reprodutiva’”.
“Em vez de resolver os problemas dos pobres e pensar num mundo diferente, alguns limitam-se a propor uma redução da natalidade”, lamenta o Papa.
Francisco considera preocupante constatar que alguns movimentos ecologistas defendem a integridade do meio ambiente, mas não aplicam estes mesmos princípios à vida humana.
“Esquece-se que o valor inalienável do ser humano é independente do seu grau de desenvolvimento a ligação íntima que há entre Deus e todos os seres vivos”, afirma.
O Papa convida ao compromisso comum dos que estão empenhados “na defesa da dignidade das pessoas” para enfrentar a manifestação do pecado “nas guerras, nas várias formas de violência e abuso, no abandono dos mais frágeis, nos ataques contra a natureza”.
Francisco critica “paradigma tecnocrático”
Para Francisco, os direitos e necessidades das populações estão acima dos interesses financeiros e do mercado. O Sumo Pontífice aproveita este documento sobre ecologia para criticar o “paradigma tecnocrático” nas sociedades atuais.
“A política não deve submeter-se à economia e esta não deve submeter-se aos ditames e ao paradigma ´eficientista´ da tecnocracia”, escreve tendo em mente o cuidado da casa comum.
Nesta sua primeira encíclica Francisco adverte para as consequências deste paradigma sobre a economia e a política, gerando decisões “em função do lucro” e permitindo que as “forças invisíveis do mercado regulem a economia”.
“A finança sufoca a economia real. Não se aprendeu a lição da crise financeira mundial e só muito lentamente se aprende a lição da degradação ambiental”, adverte.
Neste sentido, o Papa argentino sustenta que “a salvação dos bancos a todo o custo”, fazendo pagar o preço à população, sem a contrapartida de uma reforma do sistema, apenas “reafirma um domínio absoluto da finança que não tem futuro e só poderá gerar novas crises”.
Francisco deixa várias críticas ao “mecanismo consumista” promovido por um paradigma “tecno-económico” e afirma que “o mercado, por si mesmo” não garante “desenvolvimento” ou “inclusão social”.
“A aliança entre economia e tecnologia acaba por deixar de fora tudo o que não faz parte dos seus interesses imediatos”, observa, apontando o dedo à “ganância desenfreada” e ao “princípio da maximização do lucro”.
O novo documento fala no crescimento “ganancioso e irresponsável” das últimas décadas, fundado na ideia dum “crescimento infinito ou ilimitado, que tanto entusiasmou os economistas, os teóricos da finança e da tecnologia”.
Francisco denuncia “a mentira” da disponibilidade “infinita” dos bens do planeta, acusando os poderes económicos de continuarem a justificar o atual sistema mundial, onde predomina a “especulação” sem respeito pela dignidade humana ou o meio ambiente.
“Assim se manifesta como estão intimamente ligadas a degradação ambiental e a degradação humana e ética”, assinala.
O Papa sublinha que a humanidade tem sido capaz de promover um desenvolvimento tecnológico e económico, mas entende que, se o mesmo não deixar “um mundo melhor e uma qualidade de vida integralmente superior”, não se pode considerar como “progresso”.
O pontífice argentino liga a crise ecológica à crise moral e à “cultura do relativismo”, antes de apelar a novos estilos de vida e refutar “uma conceção mágica do mercado”.
“Não se pode justificar uma economia sem política”, sustenta.
Francisco entende que para lá da possibilidade de “terríveis fenómenos climáticos ou de grandes desastres naturais”, a humanidade tem também de estar atenta a “catástrofes resultantes de crises sociais”.
“A obsessão por um estilo de vida consumista, sobretudo quando poucos têm possibilidades de o manter, só poderá provocar violência e destruição recíproca”, avisa.
A encíclica observa que a rentabilidade não pode ser o único critério a ter em conta e lamenta que uma “mentalidade utilitária” olhe para a biodiversidade como “um reservatório de recursos económicos”, sem ter em consideração “o seu significado para as pessoas e as culturas, os interesses e as necessidades dos pobres”.
A encíclica é o grau máximo das cartas que um Papa escreve e a expressão ‘Laudato si’’ (louvado sejas) remete para o ‘Cântico das Criaturas’ (1225), de São Francisco de Assis, o religioso que inspirou o pontífice argentino na escolha do seu nome.
CR/Ecclesia