Pelo padre Teodoro Medeiros
O maior defeito de um filme é o de ser demasiado direto, de “pregar” a sua mensagem a plenos pulmões. Essas obras existem e até ganham óscar para melhor filme, o prémio dado às obras que não requerem concentração. Veja-se o caso de Nomadland: a presença de Frances McDormand removeu quase todo o traço de emoção, porque quem não tem casa perdeu os sentimentos. Como o final do filme reforça.
Na grande obra de subjetividade que é apreciar de cinema, só se consideram as boas intenções da obra… isso e o responder às questões mais badaladas na comunicação social: se se fala de racismo, temos óscar para Green Book; se se fala de economia, temos Nomadland. Essas obras imediatas são uma redução do cinema ao critério da sua utilidade: bom à partida porque fala de questões relevantes.
“Parasitas” foi a exceção que confirmou a regra: “-Acham que só premiamos filmes americanos? Tomem lá um da Coreia do Sul!” Desta maneira, perpetua-se o status quo precisamente quando se o sacode: afinal, até o americaníssimo Nomadland tinha uma realizadora nascida na China. Hollywood detesta Trump, já se sabia.
Contra isto, há que afirmar que a arte não se pode basear no cinismo: deem-nos antes a “verdade extasiada” de que costuma falar Herzog, uma apresentação de sentido, de verdade à qual se chega com esforço, a experiência de sublime que rejeita dogmas e tenta chegar ao que está escondido na vida. É uma perceção alta da realidade, e opõe-se à virtualidade da realidade aumentada típica de Hollywood (e que, cá está, se tenta redimir com as boas intenções).
Para esta linha de pensamento não se tornar circular, há que lembrar que a arte não é só o produto acabado, é também o como, o meio, a linguagem, os pressupostos, os instrumentos, o que se evita, o que não se repete, o que se abrevia, o não seguir trilhos conhecidos, o rejeitar do sentimentalismo e da lágrima fácil. O que nos traz a “Cafarnaum” de Nadine Labaki, de 2018.
É um filme de família mais contundente, comentário de denúncia, quase documentário, filme de tribunal, melodrama social, estória de herói improvável ou mesmo anti-herói, drama dos vencidos dos direitos humanos, road movie doméstico e um daqueles filmes em que as crianças são os protagonistas (e os adultos quase figurantes). Zain é também uma figura de Cristo em muitas dimensões: o condenado cujo processo expõe a injustiça; o defensor dos oprimidos que é sacrificado; a morte metafórica que traz atenção para a sua causa.
Zain, filho numa família numerosa, 12 ou 13 anos, muito apegado à irmã de onze anos que terá de se casar brevemente. Os pais pobres, más condições, as crianças têm de trabalhar e roubar para comer. O filme começa numa prolepse: ele leva os seus pais a tribunal, processa-os por o terem trazido ao mundo. De seguida ser-nos-á mostrado o que o levou à prisão, que crime tentou cometer e porque está tão decidido contra os seus pais.
Onde o filme se distingue, e fá-lo variadamente, é na capacidade gigântica de filmar o mundo infantil. A páginas tantas, Zain terá de tomar conta de um bebé, Jonas, os dois sozinhos, sem nada, contra o mundo inteiro. Ajudado pela edição, que nunca deixa arrastar as cenas, nem permite músicas sacarinas de encomenda, o que é dado a ver entra devagar, mas entra na alma.
As cenas da saga de Zain e Jonas, a parte central do filme, são dos fotogramas mais belos da História da Humanidade. A miséria não tem de tornar as pessoas miseráveis, nem de anular a vontade de viver: os problemas não destroem o humano e a capacidade de reinventar a realidade; filmar a inocência que perdura enquanto é quebrada não é arte para todos. Fora do comum.
Nadine Labaki, a realizadora, vive em Beirute, conhece bem a realidade circunstante e pegou em atores cujas vidas se assemelham à estória contada. Alinhou em Cafarnaum técnica e coração para uma criação que é um manifesto sobre a dignidade, satisfazendo, em simultâneo, o purista, o intelectual, o amante de cinema do mundo e até o sentimental. Para chegar lá, teria bastado apenas a mestria de ocultar a face mais crua de alguns dos problemas a que alude.
Cafarnaum significa caos em árabe, uma coincidência linguística a que poderá não estar alheia a riqueza da simbologia do filme. Jonas, por exemplo, sobrevive a mais de uma noite no maldito ventre dos peixes que o devoraram. É cinema de alto nível, original, incisivo e fresco, pungente e apaixonante; carrega os seus personagens com a essencial, inescapável ambiguidade moral dos sobreviventes.
O filme perdeu para “Roma” de Cuarón, na corrida para melhor filme estrangeiro: um facto que de per se trai as tendências burguesas dos seus votantes.