Entrevista ao Padre Nuno Santos, Reitor do Seminário de Coimbra
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O padre Nuno Santos é um dos oradores das Jornadas formativas do Clero, que estão a decorrer em Ponta Delgada até quinta-feira e esteve em Vila Franca do Campo para falar de como a Igreja pode ser, num mundo fragmentado, sinal de esperança. Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, e mestre em Ciências da Educação, com a especialização em psicologia da educação, pela Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, é sacerdote há 24 anos. Esta entrevista foi feita em parceria entre o Jornal A Crença e o Sítio Igreja Açores.
Qual é o significado do Ano Santo para a Igreja, especialmente dedicado à esperança, num tempo de tantas desesperanças e fragmentações?
A existência do Jubileu é sempre uma oportunidade de dar graças e de reforçar o sentido de sermos peregrinos, este ano revigorado pela marca da Esperança. O mundo, em geral, as vidas em particular, sobretudo no mundo mais ocidentalizado, vão-se confrontando com algumas sombras como foram a pandemia, como é a guerra e uma série de questões que trazem preocupações acrescidas e, portanto, não podemos de todo perder de vista a Esperança.
Estando criada a oportunidade, como é que a Igreja pode nutrir e fortalecer esta esperança, não só dos fiéis, mas ser justamente esta esperança para o mundo?
Uma das questões que se coloca é exatamente qual é o conteúdo e qual é o tempo da esperança cristã, e em que medida é que a Igreja pode ser esperança para o mundo. Sempre que a Igreja se aproxima do Evangelho, sempre que se aproxima do modelo e do exemplo que Jesus Cristo e no modo como se relaciona com as pessoas, no modo como cuida das pessoas, no modo como acolhe as pessoas, no modo como lhes dá sentido à sua vida, a Igreja consegue ser esse sinal de esperança.
O acolhimento é o primeiro sinal de esperança?
O que as pessoas hoje precisam, desde logo, é que alguém as acolha, nas suas fragilidades, nas suas dificuldades, também nas suas alegrias, e que alguém lhes dê uma capacidade de leitura e de sentido sobre esses acontecimentos. A Igreja acolhe em muitos contextos e circunstâncias homens e mulheres que não se identificam com o Cristianismo, desde logo da sua ação social, até tantas outras situações e contextos, e, portanto, eu diria que é aí que a Igreja, que sempre tem capacidade de gestos proféticos e evangélicos, consegue reacender uma esperança que nos habita em todos.
E o mundo, esse mundo que reside fora da Igreja enquanto espaço físico e no qual a Igreja deve estar presente, está disponível para ouvir essa esperança, ou esse sinal de esperança?
Nós temos que aceitar sempre que dentro do contexto dos que seguem o caminho, dos peregrinos no mundo, há homens e mulheres que se identificam mais com a fé, e dentro da fé com o Cristianismo e com o Catolicismo, há homens e mulheres que estão mais à beira do caminho, que não se identificam propriamente com uma crença, e há pessoas que são mesmo indiferentes e haverá também pessoas que são contra. A Igreja não pode querer ser a única, o único sinal de esperança no mundo, nem a única voz no mundo, que já não é há muito tempo, e, portanto, a Igreja dá o seu contributo.
Jesus, quando enviou os discípulos dois a dois, pediu-lhes para evangelizar, sair para o mundo. Que ações concretas é que neste mundo, hoje, tão fragmentado um mundo que vive do imediatismo, nós conseguimos explicar sem tempo esta nossa esperança, que não é uma ideia, que não é uma fezada, mas é uma pessoa?
Essa é uma questão interessante. A palavra esperança nunca aparece no Evangelho. Isso é um ponto. E a pergunta que me faz está inscrita neste sentido, que é, Jesus nunca usou a palavra, mas deu esperança. Tanto Jesus, pelo que disse, o modo como o fez, o modo como se aproximou, foi fonte de esperança. Então, o que é que a Igreja pode fazer hoje para evangelizar, se quisermos, para ser sinal de esperança? Eu diria, a primeira coisa é acolher, mesmo quem está dentro, saber acolher, acolher mais, acolher melhor, ter espaços de escuta e de acolhimento.
As pessoas não se sentem acolhidas, muitas vezes não têm com quem falar os seus dramas, não há um acolhimento que lhes dê só isso, já um sentido, ou pelo menos uma casa.
A segunda ideia é que não basta só acolher, é preciso também, depois, acompanhar essas pessoas, ou seja, acompanhá-las nos seus processos, nas suas recuperações, nas suas soluções, ajudá-las também a fazer esse caminho e ajudá-las também no discernimento, nesse acompanhamento. E depois, é preciso também ter ações inovadoras, proféticas, junto, sobretudo, dos indiferentes, daqueles para quem nem sequer a pergunta se coloca, porque quem coloca uma pergunta, vai à procura de uma resposta.
A indiferença é um obstáculo, é isso que está a dizer?
O maior problema não está naqueles que procuram e não encontram, o maior problema está naqueles que nem sequer procuram uma esperança para a sua vida. Esse sim é que é um terreno que precisa de muita preparação para podermos, depois, elevar uma história, uma vida concreta de uma pessoa. Mas, e concluindo, o nascimento de alguém é sempre uma esperança na vida, não é? Apresentar esta vida que é Jesus pode reacender essa esperança.
Mesmo dentro da Igreja há muita confusão sobre o que é a esperança, não concorda? Talvez se houvesse mais formação e maior investimento da Igreja…
A esperança vive da relação. Mais do que uma palavra, diria, é um lugar da relação.
E as relações têm fragilidades, têm grandezas e fragilidades. É feito quase de um processo muito frágil, muito quase da linha da manufatura, não da linha industrial. Nós, a Igreja, nunca fazemos tudo o que é possível.
Insisto: falta-nos muita capacidade de acolhimento, falta-nos muita capacidade de acompanhamento, falta-nos muita capacidade de estar onde a vida está a acontecer, ou seja, muitas vezes estamos onde a vida não acontece, a responder a perguntas que ninguém já hoje faz, ou pelo menos não são vitais para a vida das pessoas, e a propor coisas que não são sempre aquelas que as pessoas procuram, em termos de sentido, para as suas vidas. Portanto, eu diria que há um constante, permanente desajuste e também há uma constante e permanente necessidade de reajustar.
É um problema das instituições…
Sim, acontece com todas as instituições, podemos pensar no ensino em geral, aquilo que nós podemos chamar de uma espécie de crise de instituições.
Agora, o facto é que a Igreja tem feito uma parte do seu caminho, o Papa Francisco tem sido uma lufada de ar fresco no mundo, e diria a grande referência hoje das lideranças. Estamos a falar de um homem que foi eleito em 2013, portanto, um homem que já há muito tempo que está a marcar o ritmo da Igreja, e portanto, nós encontramos em Roma, e no Papa em concreto, um lugar de muitos desafios que nós, localmente, até temos dificuldade em concretizar, ou de estar a acompanhar esse ritmo. Eu diria que a Igreja tem feito muito para encontrar linguagens, e até imagens e gestos e palavras que reforcem a esperança.
O próprio facto de termos proposto um jubileu da esperança, ou do Papa ter proposto, já é de si uma resposta, uma proposta que acaba por ser uma resposta. Agora, claro que muitas vezes, sobretudo nas comunidades locais, essa vitalidade, essa força, esta linguagem, mesmo dos meios de comunicação, das redes sociais, das novas linguagens dos jovens, isso não está a acontecer, porque continuamos a ter muitas dificuldades, sobretudo na comunicação, e também, às vezes, não estamos a conseguir perceber o mundo como ele está a acontecer.
… Às vezes até parece que nos alienamos dele…
Claro que nós não nos temos que ajustar ao mundo, assim, sem mais, mas não podemos viver fora do mundo e estar a responder às pessoas que estão no mundo, isso é que não pode ser.
O documento do Sínodo fala constantemente na necessidade de avaliação, de revisão de processos e de prioridades. Em Igreja não só avaliamos pouco como fulanizamos muito usando a lógica humana do poder. Como poderemos sair daqui?
Nós falamos em acolhimento, criamos muitas estruturas, muitas delas, se calhar, com pouca visibilidade ou até aceitação por parte das pessoas, porque continuamos a criar estruturas dentro de casa, em vez de ir, se calhar, para o terreno, a fazer coisas novas e desafiadoras.
Como é que gostaria que se fizesse um balanço deste ano santo?
Eu diria que o Ano Jubilar vai ter muitas fases, muitos momentos marcantes, muitos pequenos e grandes gestos. Eu diria que haverá critérios para avaliação a vários níveis.
Primeiro, acho que devemos criar um ambiente de esperança contra um constante ambiente de desesperança. Ou seja, o jubileu conseguiu criar nas nossas comunidades, na vida das pessoas, um ambiente de esperança. É óbvio que não é fácil responder à pergunta, mas isso é muito importante, ter um ambiente, ter um bom ambiente, um bom ambiente de esperança.
Não corremos o risco de nos entretermos em eventos em vez de processos?
Diria que vai haver ao longo do ano várias peregrinações jubilares, a Roma, de todos os quadrantes quase, o que é também uma convocatória de regresso a uma certa identidade de peregrinos, como falámos há pouco. Portanto, reforçar o sentido da peregrinação, reforçar o sentido também de pertença e localmente as dioceses estão a fazer muita concretização deste ano.
Na minha diocese em concreto há várias peregrinações, também há a Sé-Catedral, o próprio plano pastoral toca estas dimensões, as formações têm tocado esta questão. Eu diria que os gestos vão desde os mais institucionais aos gestos mais espontâneos. Os desafios serão diferentes localmente.
Mas conseguiremos, no meio de tudo isso, despertar as comunidades para a esperança?
A pergunta é, na nossa zona, na nossa terra, na nossa paróquia, nas nossas comunidades, há ou não há esperança? Onde é que há sinais de esperança positivos e onde é que falta chegar à esperança? Eu acho que é a partir daí depois que se deve responder, porque também não parece que a avaliação deva ser abstrata ou igual para todos. Por exemplo, nalgum sítio, um sinal de esperança pode ser os jovens, no outro sítio pode ser aí que esteja uma escuridão, porque não há jovens na comunidade. Então, se calhar temos que procurar trabalhar para que esse sinal surja.
Enfim… O que quero dizer é que em cada localidade deverá haver uma avaliação do jubileu. Há para mim uma dimensão que me preocupa bastante, mas isso tem também a ver com a realidade em que eu estou inserido, que tem a ver com a comunicação. Eu acho que a Igreja continua a ter dificuldade em comunicar.
Em que sentido, para além da falta de capacidade de propor agenda?
Comunicamos com dificuldade, comunicamos desarticuladamente, comunicamos com poucos meios. A Igreja que fez um investimento muito grande nos meados do século XX, pelo menos na minha região, em termos de comunicação, e que esteve à frente em muitos âmbitos da comunicação, hoje está muito, dir-se-ia para trás nessa comunicação, nas redes sociais. Não é só redes, é capacidade de comunicar e de reforçar a sua presença no mundo também através da comunicação.
A Igreja precisa de ocupar espaço, de marcar agenda, mas esta tem sido uma incapacidade sistemática da Igreja em marcar agenda.
Quando eu penso em comunicar, penso em construir pensamento. Não penso em contar o que é que nós andámos a fazer. Ou seja, aí é que está logo um dos problemas. Nós, muitas vezes, nas nossas comunidades, o que fazemos é dizermos o que é que aconteceu, mas não estamos a marcar, por exemplo, a agenda das discussões públicas, não estamos a ser parceiros significativos e relevantes, embora cada realidade seja uma realidade. Mas, ainda assim, nós não estamos a comunicar, nós estamos a informar.
Faltam-nos competências para assegurarmos a relevância?
Os leigos, em concreto, quando não há um ambiente em que a Igreja tenha essa força, essa presença digna, então toda a gente tem vergonha, entre aspas, de se assumir como tal. Em todo o caso, também diria que há muitos preconceitos. Também há preconceitos dentro da Igreja, da Igreja para si, da Igreja em relação ao mundo, e o mundo tem muitos preconceitos em relação à Igreja. Essa capacidade de comunicar com o mundo é também uma dificuldade. Apesar de tudo, eu acho que este Papa deu-nos muita margem, ou seja, esta presença do Papa Francisco tem sido um lugar e tem sido uma oportunidade para a Igreja poder estar de outra forma no mundo.
Na verdade até, ás vezes, parece haver um desfasamento entre aquilo que é a aceitação do Papa, pelo que diz e faz e aquela que é a aceitação da Igreja, que não vai ao mesmo ritmo…
Não vejo isso, ou pelo menos, eu nunca senti isso, e estou em muitos mundos que não são propriamente cristãos católicos, e nunca senti essa dificuldade. Sei que estruturalmente, sim, estruturalmente, nem nós comunicamos bem, nem o mundo está sempre para ouvir a Igreja. São histórias antigas… Há um autor que dizia muitas vezes que nós estamos, no século XXI, a pensar a Igreja como se ela estivesse no século XIX. E é verdade, isso sim. Muita gente analisa a Igreja como distante da ciência, que as pessoas não têm cultura, que são incapazes, enfim, há uma série de preconceitos.
Que riscos corremos neste Jubileu, quando olhamos para ele como uma oportunidade de resignificação da Igreja no mundo?
Há sempre riscos associados às opções que fazemos, às escolhas e aos caminhos que trilhamos.
Se nós pusermos todas as nossas expectativas no ano jubilar, eu diria que o que nos vai acontecer, primeiro é que isto, em parte, tem uma certa ilusão, e, portanto, o que vai acontecer é uma enorme desilusão. Eu não tenho, deste ano de jubilar, uma esperança tão elevada, apesar de estarmos a falar da esperança, que altera significativamente, pelo menos, aquele que é o modo de ser e de estar da Igreja. Os processos são muito lentos na Igreja, nós já o sabemos. Eu diria que temos de ser mais realistas em concreto. Temos um conjunto de pessoas, temos um conjunto de atitudes que não vão alterar radicalmente. Em alguns casos, até tenho a percepção que há coisas que, nem sei bem como é que eu hei de descrever isso, que têm aparente retorno. E estes anos jubilares tendem a ser um estímulo. E o que eu gostava é que nós pudéssemos aproveitar algumas dimensões desse estímulo. E acredito que algumas dimensões vão ser aproveitadas.
O que é importante refletir é que a Igreja já não marca o ritmo de vida das pessoas. Esse mundo, de algum modo, acabou. Aliás, o mundo hoje não se compadece com entidades ou com instituições a marcar-lhes o ritmo, porque as pessoas vivem de um certo individualismo, e vivem de um certo consumismo, e vivem de uma certa autonomia.
Cada um quer marcar o seu ritmo, os seus interesses, e move-se em função dos seus interesses. E, na medida em que a Igreja se cruza com os seus interesses, então, entra nessa história, mais naturalmente.
Mas se a Igreja se afasta do mundo como se cruza com ele?
A Igreja não pode estar à espera se ser a única voz do mundo, porque já não o é. E, portanto, só a ilusão é que nos poderia fazer pensar isso. As grandes cidades, os grandes contextos ocidentalizados, já não vivem dessa realidade. E isso significa que a Igreja deve procurar ser cada vez mais uma voz credível, deve procurar ser cada vez mais uma voz arrojada e criativa, e depois aceitar também, com humildade, que a única maneira de estar no mundo é tentar ser uma candeia, uma pequena luz, que vai tentando iluminar o caminho. Tudo o que é credível, tudo o que é bom e tudo o que faz bem, acaba por ser uma referência, não tenho dúvidas nenhumas. Demora é o seu tempo.
(Entrevista conjunta entre o Jornal A Crença e o Sítio Igreja Açores)