Por Carmo Rodeia
Esta quarta-feira começa a Quaresma. 40 dias que são memória dos 40 dias que Jesus passou no deserto, segundo a narração evangélica. Mas também dos 40 anos que o Povo de Deus fez de caminho, de preparação, de reencontro consigo mesmo, até entrar na Terra Prometida.
Na minha vida tenho, como a maioria das pessoas que se dizem cristãs, duas estruturas religiosas: a que resulta do meu batismo que me foi proporcionada pelos meus pais e depois prosseguida na trajetória da catequese, e outra que resulta de uma opção já madura, de meia idade quase, por um caminho mais próximo de estudo e de entrega ao serviço e à missão de evangelização através da comunicação.
Por isso, não poderia deixar de neste inicio da Quaresma falar sobre este tema, até atendendo ao momento tão sofrido que a Igreja, todos nós, enfrentamos, independentemente de se pertencer à hierarquia ou ao simples povo de Deus, como eu.
Lembro-me de no ano passado, na oração do ângelus que precedeu o inicio da Quaresma, o Papa Francisco ter dito que a “Quaresma é tempo de luta espiritual contra o espírito do mal”. Esta luta acontece no “deserto onde podemos descer em profundidade aonde se joga verdadeiramente o nosso destino, a vida ou a morte”.
Francisco lembrava “a prova enfrentada voluntariamente por Jesus”, no deserto, onde naqueles quarenta dias de solidão, enfrentou satanás ‘corpo a corpo’, desmascarando as suas tentações, vencendo-o. “Nele todos vencemos, mas nós devemos proteger esta vitória no nosso dia-a-dia”, afirmou.
Para o Papa “a Igreja faz-nos recordar tal mistério no início da Quaresma, porque isto nos dá a perspetiva e o sentido deste tempo, que é o tempo do combate – na Quaresma deve-se combater. E enquanto atravessamos o deserto quaresmal, nós temos o olhar dirigido à Páscoa, que é a vitória definitiva de Jesus contra o Maligno, contra o pecado e contra a morte”.
Neste primeiro dia da Quaresma há um desafio premente: colocarmo-nos decididamente no caminho de Jesus, o caminho que conduz à vida. Olhar Jesus, o que fez Jesus e seguir com Ele. Mas conseguiremos fazer isso? Com este barulho e com esta confusão em que estamos?
“O coração humano é um mar gelado, um oceano gelado” como diz Tchekov. E na vida, experimentamos esse gelo muito mais facilmente do que às vezes imaginamos.
Ou porque temos medo, ou porque nos sentimos superiores aos outros, ou porque nos deixamos abater pelo mal e pelas partidas da vida…Mas não tem que ser assim.
A Quaresma diz-nos que há um caminho que tem de ser trilhado e que nós temos de abraçar para alcançar a meta, mesmo que por vezes estejamos confusos quanto às possibilidades do caminho. E os três meios que nos são dados são simples porque são meios que formam o coração na caridade, no amor, na esperança e na fé, como tão bem sublinha o Papa na sua mensagem para esta Quaresma. Oração, Jejum e esmola. Três palavras que são atitudes e compromisso, que nos lembram o essencial: um verdadeiro encontro com Deus. E diante dessa possibilidade não há mal que nos possa impedir ou afastar dessa intimidade. Mesmo quando a montanha é grande para ser subida ou as águas profundas demais para serem passadas.
Lembro-me da primeira quinta feira da Quaresma de 2014 passada em casa de uns amigos em Vila Franca do Campo, mais concretamente na Ponta Garça. Estava a fazer reportagem com os Romeiros de São Pedro e por um daqueles acasos que só o Espírito Santo sabe proporcionar vivi uma das noites mais intensas da minha vida, daquelas que nos viram do avesso e nos colocam diante de toda a nossa fragilidade. Nessa noite de encontro com a vida, dedilhando um terço cheio de romarias e de contas feitas de dor, cansaço e muita esperança que me foi oferecido, senti que não podia desistir, por maior que fosse (e era!) a angústia, a hesitação e a vontade de fugir.
A experiência da fé serve justamente para aumentar o nosso desejo de Deus e intensificar a nossa procura, cintes de que Deus salva-nos não apesar de nós mas com tudo aquilo que nós somos. É para esta confiança que devemos trabalhar este caminho quaresmal. De outra forma e com o atual estado das coisas, só podemos desistir. E isso não é o que Deus nos pede. Se é que alguma vez nos pediu alguma coisa…