A Comissão Independente para o Estudo de Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica em Portugal apresentou hoje em Lisboa um balanço dos primeiros três meses de atividade, nos quais registou 290 testemunhos.
Pedro Strecht, coordenador do organismo, disse aos jornalistas, que as vítimas esperam, por parte dos responsáveis católicos, um pedido de desculpas.
“Começa a ser expectável que se possa vir a materializar, através da forma que se entenda por mais correta, aquilo que estas vítimas amplamente desejam, quando agora, já adultos, nos contactam, ainda reféns do seu trauma: um inequívoco pedido de desculpas, por todos estes crimes cometidos, honrando assim a dignidade humana daqueles que a reclamam”, referiu, em conferência de imprensa que decorreu na Fundação Calouste Gulbenkian.
O psiquiatra apontou ainda ao “firme compromisso” de que o futuro seja de maior e respeito pelos mais novos e de prosseguir este trabalho, “juntos pela verdade”.
Para o coordenador, é necessário que se “distinga de forma cuidada e séria a árvore da floresta”, pelo que considera “fundamental manter a relação aberta e de confiança mútua com a CEP e todos os elementos das Igreja Católica em Portugal, para levar este estudo a zonas ainda mais profundas do conhecimento”.
Dos 290 testemunhos validados, indicou Pedro Strecht, mais de metade dos casos revelam “um número possível” ou mesmo “altamente provável” de mais vítimas.
Os casos estão a ser analisados individualmente, para triar “situações de crimes não prescritos ou risco de continuidade dos mesmos”, alguns dos quais já foram entregues ao Ministério Público.
Álvaro Laborinho Lúcio, jurista e membro da comissão, precisou que estão em causa 16 casos de abuso de menores e que a “esmagadora maioria” dos testemunhos “remete para situações muitíssimo anteriores” e estão prescritos, do ponto de vista criminal.
“Ao longo destes anos, houve claras situações de graves abusos sexuais”, indicou o especialista, assinalando que a Igreja Católica “tem todo o interesse em que este assunto seja levado às últimas consequências”.
Pedro Strecht anunciou que foi concretizado o contacto com uma equipa de investigação científica, “composta por reputados historiadores e arquivistas, para acesso e estudo dos arquivos históricos da Igreja, que já está em ação no terreno”.
A equipa, liderada por Francisco Azevedo Mendes, da Universidade do Minho, vai trabalhar em articulação com cada diocese, nos próximos meses.
A comissão contactou outras estruturas e instituições, como as Comissões Diocesanas, Institutos Religiosos, Instituto de Apoio à Criança, Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens, Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, Associação Quebrar o Silêncio, Sistema de Proteção e Cuidado de Menores e Adultos Vulneráveis (Serviço de Escuta dos Jesuítas).
“Em muitos casos, o movimento inicial foi quase sempre da Comissão”, assinalou o psiquiatra, considerando que tem havido um retorno “abaixo do possível e necessário”.
A comissão está ainda a realizar um levantamento dos casos reportados à Comunicação Social, de 1950 até hoje, que revelou “situações importantes, mas também não em grande quantidade”.
“Nestas situações existem poucas queixas que levem a processos jurídicos” ou, eventualmente, condenações.
Em fevereiro, num balanço do seu primeiro mês de atividade, a Comissão Independente tinha registado 214 testemunhos.
Pedro Strecht assumiu a intenção de “chegar mais longe, às margens”, ao que se chama “país profundo”.
A 10 de maio, no Auditório 2 da Fundação Gulbenkian, em Lisboa, vai decorrer um encontro científico sobre o tema “Abusos Sexuais de Crianças: conhecer o passado, cuidar do futuro”, com uma sessão especial e o patrocínio do presidente da República Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa.
“Este caminho que todos vimos a trilhar é tão difícil quanto desafiador”, assinalou o coordenador da Comissão Independente.
“Agora, e mais do que antes, não podemos deixar de o percorrer em nome de todas as pessoas que já nos confiaram a sua voz e, com ela, uma parte tão difícil das suas vidas”, acrescentou.
Ana Nunes de Almeida, socióloga e investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e presidente do respetivo Conselho Científico, falou, por sua vez, de um problema complexo e sensível, prometendo “rigor, determinação e perseverança”.
“A metodologia centrada na perspetiva da vítima tem correspondido às expectativas que nela depositamos”, observou.
A socióloga falou da recolha e armazenamento de testemunhos, sobretudo através do preenchimento de um inquérito online, que permitiu chegar a uma “amostra riquíssima, que vale a sua diversidade interna”, representando “todos os níveis de instrução”, com mais homens do que mulheres, de todas as regiões do país e grupos etários.
Ana Nunes de Almeida precisou que, nos testemunhos recolhidos, o primeiro abuso sexual aconteceu entre os dois e os 17 anos de idade das vítimas.
“O número de crianças e adolescentes em causa atinge um número muito superior. Mesmo assim, estamos na ponta do icebergue”, declarou.
Pedro Strecht realçou que foi possível identificar indícios de “encobrimento e ocultação”, incluindo referência a bispos que se encontram em funções, registando também “a prática anterior da deslocação da pessoa abusadora de local para local”.
O motu próprio ‘Vos estis lux mundi’ (2019), assinado pelo Papa Francisco, prevê penas para quem falhe na execução das normas previstas.
(Com Ecclesia)