Pelo padre José Júlio Rocha
O primeiro regime de terror dos Talibã durou de 1996 a 2001, quando as tropas americanas libertaram o país desse mal. Na altura, quando ainda o regime imperava, recordo-me bem de uma entrevista feita por um jornalista corajoso a um membro dos Talibã, com aquele turbante sujo na cabeça, a barba suja, a cara suja, a metralhadora suja e a voz suja. Dizia que os ocidentais não sabiam proteger as suas mulheres, que as deixavam à solta, sujeitas a violações e faltas de respeito. Eles sim. Eles sabiam cuidar delas, dar-lhes uma casa, dar-lhes de comer e de vestir, não as sujeitar às intempéries da sociedade agressiva. As mulheres, para aquelas bandas, portanto, não são bem seres humanos: são seres que os homens protegem. Isso se elas colaborarem: usarem a burka, não saírem de casa sem a companhia de um homem, não trabalharem, não serem tratadas por médicos homens, não estudarem, serem chicoteadas em público se mostrarem os tornozelos, não usarem cosméticos, serem apedrejadas se traírem o marido, não rirem em voz alta, não falarem em público, não espreitarem das varandas ou janelas, etc. Bom, há quem diga que o pássaro está mais protegido na gaiola do que em liberdade. E há quem diga que os estúpidos estão tão cheios de certezas quanto os sábios de dúvidas.
Estranho essa estranha relação das religiões com as mulheres. A religião também é um fenómeno humano e cultural, com estruturas similares entre as várias religiões, tais como haver uma casta eleita, sacerdotal, quase sempre exclusivamente composta por homens. O papel secundário e subserviente da mulher é um caso de estudo na maioria das grandes religiões do mundo. Vou avançar uma hipótese para tal situação. Em grego antigo, a palavra “mulher” era “guné”. Desse nome derivam termos usados na nossa língua, como ginecologia, genes, genética, génesis e, “last but not least”, genitais. Isto significa que a ideia de mulher esteve quase sempre associada ao sexo e à procriação. Como sabemos, sexo e religião travam uma batalha milenar, mais por culpa dos homens e dos seus preconceitos do que por culpa de Deus. Como o sexo leva à procriação, cá está um pelouro onde colocar a mulher e dar sentido à sua existência feminina: a mulher só se realiza na maternidade. O papel da mulher é ser mãe e, se lhe dermos as condições que ela precisa, fará bem o seu papel diante do Divino Criador.
Há cerca de dez anos, um alto prelado português afirmou: “A mulher deve poder ficar em casa, ou, se trabalhar fora, num horário reduzido, de
maneira que possa aplicar-se naquilo em que a sua função é essencial, que é a educação dos filhos”. Completamente de acordo, só com uma pequena “nuance” a ajustar: o homem também. Ou será preciso fazer um desenho muito grande para compreender que a expressão “o papel da mulher é em casa” é responsável por uma história de subordinação, silêncio, violência, desrespeito, atentados à liberdade e à dignidade historicamente bem mais graves do que os divórcios de hoje em dia?
Não me esqueço da história que me contaram sobre uma assistente social que visitou uma das terras mais pobres da nossa terra, encontrou uma mulher em casa, cheia de nódoas negras, a lamuriar que o marido lhe batia todos os dias. À sugestão da assistente que ela o deixasse da mão, respondeu: “mas ele está batendo no que é seu…” O peso histórico-cultural da subserviência é, como todos os grandes preconceitos, tão pesado que acaba por atingir as próprias vítimas que, não raras vezes, são suportes da sua condição secundária. Belo trabalho!
Não pretendo igualitarismo, como o querem certos movimentos que tendem desmesuradamente para o extremismo, tal como encontramos em muitas cabeças pensantes. O igualitarismo é a pior das desigualdades.
Maria de Nazaré foi a mulher que mais influenciou a humanidade. Normalmente veneramos a sua maternidade: Mãe de Deus e Mãe dos homens. Mas a grandeza e a santidade de Maria não se resumem à sua maternidade ou à obediência do seu sim. O detalhe da visita à prima Isabel é eloquente. Estão duas mulheres frente a frente. Naquela casa há um homem, Zacarias, esposo de Isabel. É sacerdote. Mas é um sacerdote mudo, sem palavra, e tudo isso por vontade de Deus: foi Deus que quis que ele ficasse calado, mudo, até que o Batista nascesse. A voz é dada às mulheres, principalmente a Maria que, depois da saudação, profere o mais belo hino do Novo Testamento, o “Magnificat.” O poema inspira-se, como é óbvio, no Antigo Testamento, especialmente no cântico de Ana, Mãe de Samuel, onde se lê: “O arco dos fortes foi quebrado e os fracos foram revestidos de vigor. Os saciados tiveram que ganhar o pão e os famintos foram saciados.”
O Cântico de Maria segue os mesmos passos dos grandes profetas que anunciavam a chegada do Messias como uma revolução sem par na História. Os versos seguintes não foram proferidos por Marx ou Engels, Levy Strauss ou Maquiavel, nem por qualquer caudilho político de qualquer quadrante. É posto nos lábios de uma jovem, Maria de Nazaré, diante de outra mulher, diante de todo o mundo: “Manifestou o poder do seu braço e dispersou os soberbos. Derrubou os poderosos de seus tronos e
exaltou os humildes. Aos famintos encheu de bens e aos ricos despediu de mãos vazias.”
Olhar Maria apenas como Mãe é redutor. Ela foi Mulher, com as letras todas e com toda a dignidade. Empunhou o estandarte daquela revolução inigualável a que chamamos cristianismo e que muitos querem adormecer, adocicar, anestesiar. Olhar Maria como Mulher, exemplo para as mulheres, é dar-lhes a possibilidade de serem mais Igreja. Assim, como o Papa Francisco quer a Igreja. O resto são preconceitos.
*Esta crónica foi publicada na edição desta sexta-feira do Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.