Pelo padre José Júlio Rocha
Cabanas de Viriato. Mas quem é que conhece Cabanas de Viriato, que, até 1970, era só Cabanas e só nessa altura recebeu o acrescento de Viriato, aquele líder de uma tribo que não se governava nem se deixava governar?
Em 1885 aí nasceu Aristides, no lugar de Cabanas, distrito de Viseu, a sul da cidade e a norte da Serra da Estrela. Terras duras de granito e xisto, onde os homens são duros e solenes como a pedra bruta.
Aristides cursou Direito em Coimbra, aluno brilhante, e, em 1907 já estava em Lisboa onde se casou com a prima Maria Angelina, matrimónio de onde nasceu a módica quantia de catorze filhos.
Tendo enveredado pela carreira diplomática, Aristides ocupou diversas delegações consulares pelo mundo, como Zanzibar, Guiana Britânica, Brasil, Estados Unidos, Luxemburgo ou Espanha. Reza a história que, estando no consulado em Vigo, em 1933, foi chamado por Salazar para uma missão secreta: levar a irmã Lúcia, pastorinha de Fátima, de Coimbra para Tui. Profundamente religioso, Aristides de Sousa Mendes afirma que se deve à irmã Lúcia a cura da então filha mais nova, Teresinha, profundamente doente e que, de um dia para o outro, recuperou a saúde perante a incredulidade dos médicos.
Em 1938 é nomeado cônsul em Bordéus, na França. É aí que Aristides de Sousa Mendes vai entrar para a História. Nesse ano, a Alemanha nazi anexava a Áustria e começava a sua política de discriminação de judeus que, por toda a Europa, tentavam fugir à perseguição nazi. A 3 de Setembro de 1939 os aliados declaram guerra à Alemanha e as ondas de refugiados recrudescem. É então que Salazar emite, para todas as embaixadas e consulados portugueses na Europa, a “Circular 14”, que proibia terminantemente a concessão de vistos de entrada em Portugal a apátridas, russos e judeus.
Com a tomada de Paris, em maio de 1940, Bordéus fica sob o domínio do governo de Vichy, fantoche de Hitler. Chegam à cidade hordas de refugiados, na maioria judeus, na desesperada tentativa de escaparem aos campos de concentração. Calcula-se que entre 8 a 10 milhões de pessoas, na maior parte mulheres, crianças e idosos, fugiram do exército alemão para sul, naquela que é considerada a maior deslocação de refugiados da história da Europa.
Entalado entre a obediência à lei de Salazar e a sua consciência, já em maio de 1940 Aristides começa a falsificar vistos e assim continuará. Começa então a espalhar-se a fama de que o cônsul português é um homem bom e, à porta do consulado, vão-se acumulando milhares de refugiados, sobretudo Judeus, à procura de fugir para Portugal. A 13 de Junho, estourado diante daquelas multidões em fuga, Aristides cai num esgotamento nervoso que o leva à cama durante três dias. Sai da cama com a decisão mais importante da sua vida: “A partir de agora, darei vistos indiscriminadamente a toda a gente, já não há nacionalidade, raça ou religião”. Nos dias seguintes, dia e noite, são passados muitos milhares de vistos que levarão outros tantos milhares de refugiados a Portugal e, daí, sobretudo, para os Estados Unidos. “Se há que desobedecer, prefiro que seja a uma ordem dos homens do que a uma ordem de Deus.” Terá afirmado o nosso cônsul, ajudado pelo Rabino Jacob Kruger.
Não terá sido apanhado de surpresa quando, a 20 de junho de 1940, Aristides recebeu um telegrama de Salazar a ordenar a sua comparência em Lisboa, para justificar a desobediência. Destituído do cargo de cônsul, aposentado compulsivamente, salário reduzido ao mínimo, Aristides de Sousa Mendes vai viver para o seu passal de Cabanas o resto da sua vida, com a numerosa prole, na pobreza. Vem a morrer em Lisboa, num hospital franciscano, a 3 de abril de 1954, numa tal miséria que nem fato tinha para o seu funeral.
Este Schindler português, que terá salvado mais de dez mil vidas, foi agraciado pelo estado de Israel com o título incomparável de “Justo Entre as Nações”, em 1966, enquanto, no Portugal do Antigo Regime, não passava de um esquecido.
Aristides de Sousa Mendes é um dos grandes heróis de Portugal, pelo seu gesto ímpar e heroico, pela sua abnegação, humanidade e coragem de enfrentar, quase sozinho, todos os poderes daquele período hediondo da história. O seu rosto devia estar em moedas, selos, monumentos por todo o País. Devia haver um dia dedicado à sua memória, porque, diante de tantos diplomatas e políticos que cederam ou se calaram perante os crimes da Segunda Guerra, ele honrou, como poucos, a História de Portugal.
Só em 1986 recebe, a título póstumo, o grau de Oficial da Ordem da Liberdade e seguem-se, a partir daí, as condecorações.
A última das homenagens veio a 3 de julho de 2020, há alguns meses: a proposta de um túmulo para Aristides de Sousa Mendes no Panteão Nacional. Foi aceite quase por unanimidade na Assembleia da República.
Apenas um deputado se absteve. Não é preciso dizer o seu nome. Toda a gente sabe quem é.
*Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio