Pelo padre José Júlio Rocha
O mato do Ferraz, uns quintais abaixo da casa da avó, era o ponto alto da nossa aventura. Não passava de uma mata de eucaliptos, pontilhada por faias do norte perfumadas, mas era-nos imenso na nossa infância, um país das maravilhas por descobrir, desbravar e inventar um mundo paralelo de imaginação e sonho, que só as crianças sabem fazer.
Descíamos as escadas estreitas e íngremes, que davam da cozinha até à loja, onde se guardavam pipas e balseiros, cruzávamos dois currais de porco construídos em basalto negro, abríamos um portão desengonçado e passávamos por debaixo de uma figueira densa e secular, que estendia os ramos grossos como um polvo ao contrário. Ao lado ficava um tufo de espadões, com uns túneis pelo meio, onde nos escondíamos quando a avó velhinha nos chamava para comer.
O castanheiro, imponente e arisco, ameaçava-nos com os ouriços espalhados como minas pelo chão, mesmo antes de um declive que, à direita, ia dar a uma plantação de bananas-macacas. À esquerda, as árvores de veludo, delicadas e femininas, deixavam cair umas vagens parecidas com as das favas. Aí mesmo, no fim da linha das árvores de veludo, havia uma passagem, uma falha no muro. Por ela entrávamos no mundo secreto e majestoso do mato do Ferraz.
Cada árvore tinha um nome, uma identidade, uma vida própria. A faia grande, a faia dos chapéus, a faia fininha, a faia cambada, a faia do café. Vagueávamos na escuridão daquele mundo, à descoberta de novos nomes e novas aventuras, a discursar sobre a altura da faia grande, a grossura da faia grossa, a graça da faia fininha e a nobreza da faia cambada.
Foi então que o meu irmão foi para a escola de baixo e começou a jogar futebol. E foi por essa altura que uns lenhadores profanaram o mato, armados de motosserras, invasores como as tribos bárbaras do norte.
Sozinho de meu irmão ausente, assisti, naquela manhã de vento, ao espetáculo tenebroso dos nomes a cair, das histórias a morrer em cada tronco que desabava, majestoso e altivo, num estrondo seco e grandioso de morte.
A vida é uma sucessão de mundos que se sobrepõem. Era a primeira vez que um dos meus mundos ruía e eu regressei a casa apertado na alma e no peito, com o único consolo de contar a meu irmão a mais desoladora das desgraças, a dantesca morte de quase metade das árvores do nosso mundo.
«Cortaram muitas faias do mato do Ferraz», e meu irmão debruçado sobre uma caderneta de cromos. «A faia fininha caiu», e o meu irmão a colar, com cola Gina, o cromo do Benje, guarda-redes do Farense. «Cortaram também a faia cambada», e o meu irmão à procura do cromo do Louceiro, médio do Montijo. «Vão cortar o mato todo» e o meu irmão a lamentar que lhe faltava o Cardoso, defesa do Setúbal. Pior do que a morte das árvores foi o desprezo distraído do meu irmão que, em pouco tempo, tinha saltado de um mundo para o outro sem se magoar, deixando-me sozinho do lado das árvores caídas.
Mas o mundo não é mundo sem o irmão. E depressa fiz o meu luto, despedi-me das árvores e entrei, de mãos dadas com ele, nas fintas do Cubillas, nos quatro golos do Lemos ao Benfica, na morte do Pavão. Entretanto vivemos outros mundos, como o dos aviões americanos, desde o “Galaza” até ao “avião da Navy”, mergulhámos nas ondas do Areal da Praia e nos “assucrins” de dois escudos e meio, na imitação balofa dos políticos, no jardim da Praia, na brincadeira com palhetas de gelado, no quartinho da barbearia.
Quase cinquenta anos depois ainda andamos nisto. Meu irmão é artista em criar mundos sobre novos mundos e eu nunca, desde a infância, deixei de me maravilhar com aquela alma de peregrino: pombos correio que cruzam oceanos, telescópios que identificam as luas de Saturno, livros históricos que desvendam os segredos dos Papas, músicas e letras de danças de carnaval.
Passaram estes e outros mundos por nós. Continuamos as mesmas crianças a olhar para as copas das árvores altas ou abraçados aos troncos solenes que rangem ao vento. Todos os mundos não passaram, afinal, de desculpas para viver. Há apenas uma realidade que liga todas as aventuras e, hoje, toneladas e memórias: o irmão. Isso não tem preço.
*Este texto foi publicado na edição de sexta feira do Diário Insular, na rúbrica Rua do Palácio